Revelado em julho no Festival Internacional de Marselha, há poucas semanas exibido no Doclisboa, Complô, de João Miller Guerra, é mais um documentário português que surge no circuito comercial. O acontecimento suscita uma questão estrutural de âmbito mais geral cuja complexidade, escusado será dizê-lo, não é da responsabilidade deste filme (ou de qualquer outro, em boa verdade). Podemos resumi-la numa interrogação insólita. Porquê insólita? Porque não pode ser pensada fora de uma política cultural consistente: será que existe um circuito organizado de difusão que permita rentabilizar (em todos os sentidos) o significativo aumento da produção documental portuguesa? Ou ainda: até que ponto o impacto que essa produção tem, ou pode ter, na paisagem global dos festivais se prolonga na exibição nacional?Dito isto, importa destacar o facto de Complô ser, como muitos outros documentários atuais (portugueses ou não), um objeto de espírito militante, neste caso com uma visão cuja singularidade deve ser destacada. Estamos, assim, antes de tudo o mais, perante uma militância afetiva. Assim o confirmam algumas palavras do realizador, apresentando o projeto como um retrato muito especial de Ghoya, nome artístico do rapper Bruno Furtado: “Complô surgiu de um envolvimento profundo com o Bruno, a sua comunidade, a sua história e a luta política que eles personificam. Eu nunca pretendi resumir-me a um observador externo. A minha abordagem assenta em desenvolver relações que evoluem para colaboração”.Filho de mãe santomense e pai cabo-verdiano, Bruno Furtado tornou-se uma figura emblemática do rap crioulo, condição indissociável de uma militante postura política. Nascido no antigo Bairro das Fontainhas, em Lisboa, o não reconhecimento da sua condição de cidadão português, para lá do absurdo burocrático, marca a sua identidade pessoal e artística — como se escreve na sinopse oficial do filme, ele é “órfão de um país onde nasceu”.Iniciado em 2019, o projeto de Complô (título de um tema de Ghoya) seria fortemente marcado pelo assassinato do ator Bruno Candé, em 2020 — na abertura do filme, esse crime de ódio racial é evocado através de uma das manifestações contra o racismo que, na altura, aconteceram em Lisboa. Como contraponto, vamos descobrindo vários momentos dos dias de Ghoya, em gravações de estúdio, procurando as palavras certas e os ritmos cúmplices. Esta atenção aos espaços interiores e ao tempo íntimo da criatividade envolve uma salutar revelação — trata-se, em última instância, de descobrir uma componente vital, isto é, o trabalho artístico. .Falar de sexo dá muito trabalho.Realismo em tom espanhol