Sergei Eisenstein (1898-1948).
Sergei Eisenstein (1898-1948).

‘O Couraçado de Potemkine': A herança revolucionária de Sergei Eisenstein

'O Couraçado Potemkine', de Sergei Eisenstein, estreou-se há 100 anos. Mais do que um objeto da propaganda soviética, nele se exprime um cineasta que revolucionou a linguagem cinematográfica.
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A história do cinema apanha-nos, por vezes, nas curvas do tempo, levando-nos a perguntar se a memória de um filme se esgota no modo como o vemos e interpretamos no nosso presente, a uma distância mais ou menos considerável do seu aparecimento. Surge-nos, agora, um desses exemplos, transparente e empolgante, para mais questionando o nosso entendimento das relações entre cinema e política - ou melhor, entre poder político e produção cinematográfica. Realizado por Sergei Eisenstein (1898-1948), esse filme chama-se O Couraçado Potemkine. Surpreendentemente ou não, o calendário garante-nos que a sua estreia ocorreu há 100 anos - foi no Teatro Bolshoi, em Moscovo, no dia 21 de dezembro de 1925, numa sessão que serviu também para assinalar os 20 anos da Revolução de 1905.

Não era, obviamente, acidental a associação do filme a tal efeméride. Desde logo porque Eisenstein nos legou uma espetacular dramatização da revolta da tripulação do navio de guerra Potemkine contra os respetivos oficiais, precisamente um episódio central das ações revolucionárias de 1905. Tal episódio acabou mesmo por se tornar uma referência simbólica da crescente resistência ao poder dos czares, ao mesmo tempo emprestando uma dimensão lendária ao porto de Odessa, cenário nuclear do movimento revoltoso.

Política e cinema

Com o triunfo da Revolução Soviética, em 1917, e o desenvolvimento do projeto comunista inicialmente liderado por Lenine, o cinema tinha sido rapidamente reconhecido, organizado e promovido como fundamental instrumento político e ideológico - e não será preciso recordar que tudo isso acontecia num cenário em que, a par da imprensa, o cinema era uma via privilegiada de comunicação (global, como agora se diz).

Aliás, se podemos resumir a lógica estatal de semelhante estratégia, talvez possamos caracterizá-la a partir de três títulos emblemáticos. O primeiro, A Greve, também de 1925, foi a primeira longa-metragem de Eisenstein, celebrando uma greve fabril como um capítulo particular da afirmação dos ideais comunistas na Rússia pré-revolucionária. O Couraçado Potemkine ocupa o segundo lugar dessa possível trilogia que irá encerrar-se em 1929, com O Homem da Máquina de Filmar, de Dziga Vertov, filme que, além do mais, ao longo das décadas, sempre surgiu em lugar de destaque nas discussões práticas e teóricas sobre a fronteira (ou a sua ausência) entre o imediatismo do olhar documental e o artifício da ficção cinematográfica.

Tanto bastou para que, nos mais diversos contextos, O Couraçado Potemkine, sustentado ou não pela retórica comunista, surgisse regularmente (e justificadamente) como símbolo revolucionário. Sem esquecer que, por vezes, o rótulo é usado de forma automática e superficial, quanto mais não seja porque a ideia de que Eisenstein foi um mero “executante” das diretivas do Partido Comunista da União Soviética carece de alguma precisão histórica. Para nos ficarmos por um dado esclarecedor, lembremos que a fase final do seu trabalho (e da sua vida) foi objeto de muitas restrições por parte da máquina estalinista, a ponto de a sua derradeira realização, Ivan, o Terrível (1944-46), ter ficado como um filme em duas partes quando, de facto, tinha sido concebido como um tríptico.

Curiosamente, a simbologia revolucionária do clássico de Eisenstein encontrou uma expressão muito particular no contexto português. Logo após o 25 de Abril, O Couraçado Potemkine emergiu, de facto, como o primeiro testemunho público do fim do sistema de censura do Estado Novo (que se manteve depois da morte de António de Oliveira Salazar, com Marcello Caetano como primeiro-ministro, durante a chamada “primavera marcelista” em que alguns títulos anteriormente proibidos puderam ser distribuídos nas salas).

'O Couraçado Potemkine' é um filme que reflete um novo entendimento do espaço e do tempo, valorizando sempre a figura humana.A sua estreia, em Lisboa, no Cinema Império da Alameda Dom Afonso Henriques, adquiriu uma dimensão lendária registada numa reportagem da RTP emitida nas notícias de 3 de maio de 1974 (disponível no site arquivos.rtp.pt). Tal dimensão seria, de algum modo, relançada e confirmada algumas semanas mais tarde, já no mês de agosto, com a estreia de O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, também em Lisboa, desta vez no Cinema São Jorge.

Uma nova linguagem

Para entendermos a riqueza e complexidade da herança de Eisenstein - e, nessa medida, o seu legado genuinamente revolucionário - precisamos de o olhar para lá das componentes políticas do contexto em que trabalhou. Ou melhor, trata-se de reconhecer como a função propagandística que alguns dos seus filmes possam ter desempenhado, além de ambivalente, não esgota (longe disso) a sua procura de uma linguagem nova do cinema - e para o cinema.

Não esqueçamos, por isso, que em 1925 o cinema, além de ser uma arte muito jovem (a primeira projeção pública de filmes fora organizada pelos irmãos Lumière, em Paris, em finais de 1895), era também um universo específico que podia herdar formas e narrativas do teatro ou da literatura, mas não se confundia com elas. Para termos uma pequena noção da vitalidade criativa da época lembremos que 1925 é também o ano de filmes como A Grande Parada, de King Vidor, e A Quimera do Ouro, de Charlie Chaplin, ambos nos EUA, ou ainda, em Inglaterra, The Pleasure Garden, primeira longa-metragem de um ilustre desconhecido de seu nome Alfred Hitchcock.

Memórias da revolução de 1905.
Memórias da revolução de 1905.

A própria produção cinematográfica soviética, mais ou menos “mobilizada” pelas urgências da propaganda, estava longe de qualquer formatação esquemática. Em 1924 surgira mesmo um delirante objeto burlesco sobre o confronto de dois mundos - As Aventuras Extraordinárias de Mr. West no País dos Sovietes, de Lev Kulechov - que, depois de dois anos de circulação pela URSS, foi retirado pelas autoridades comunistas por ser demasiado “americano” e, nessa medida, “formalista” (acusação de que, mais tarde, Eisenstein também seria alvo). Um ano depois de O Couraçado Potemkine, portanto em 1926, estreava-se outro clássico absoluto - Mãe, de Vsevolod Pudovkin -, experiência eminentemente trágica que, curiosamente, tem também como pano de fundo a Revolução de 1905.

Neste contexto, a par de outro autor admirável, o americano David W. Griffith (1875-1948), Eisenstein foi um dos primeiros a valorizar o facto de o cinema, ao “colar” as suas imagens, estar a gerar uma nova linguagem - a montagem - que era (e é) muito mais do que um mero automatismo técnico. Em 1915, Griffith dera um impulso decisivo a tal processo através da narrativa épica de O Nascimento de uma Nação, ensaiando processos - movimentos de câmara, ligação de imagens gerais com grandes planos dos rostos, ações paralelas, etc. - que não foram estranhos às experiências de Eisenstein.

A arte da montagem

De forma sugestiva, podemos dizer que Eisenstein concebeu a montagem dos seus filmes a partir de uma agilidade narrativa em que a colagem de uma imagem com outra não se reduz a um banal efeito de continuidade (espacial ou temporal). Colar um plano com outro pode ser mesmo, a partir da soma de duas imagens, fazer nascer uma terceira significação (1+1=3). E porque todas estas peripécias se enredam com elementos de natureza lendária, lembremos que um dos exemplos maiores do génio de Eisenstein como montador está, justamente, em O Couraçado Potemkine, na cena mítica da escadaria de Odessa.

É nesse cenário monumental que surge uma multidão para saudar os marinheiros revoltosos do Potemkine. O aparecimento de um batalhão de Cossacos muda de forma brutal o clima emocional da cena, com a população a ser baleada, indiscriminadamente, num perturbante crescendo trágico. Certamente não por acaso, os rostos são elementos visuais determinantes na construção de toda a sequência, numa dinâmica em que a variação de escalas gera uma musicalidade muito particular. Reinventando o tratamento visual da figura humana, Eisenstein estava também a criar a possibilidade de nascer um novo espetador de cinema.

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