É num edifício industrial nos arredores de Queluz, entre vários corredores tão inóspitos que mais parece estarmos dentro de um thriller que chegamos à sala de ensaios da Lisbon Film Orchestra. É lá que encontramos o maestro Nuno de Sá, um dos mentores da Lisbon Film Orchestra (LFO). Sentado num canto da sala, enquanto no outro extremo os músicos afinam alguns instrumentos, o maestro, em conversa com o DN, recorda que a ideia de criar a LFO surgiu em 2005, quando estava em Praga a estudar guitarra. “Assisti a um concerto de uma orquestra que tocava bandas sonoras e percebi o impacto que teve no público. Era literalmente um concerto de orquestra, erudito, mas com um repertório de músicas de filmes. Decidi então trazer a ideia para Portugal.” Em conjunto com o produtor Francisco Santiago decidiu começar o projeto com um concerto inaugural no cinema São Jorge. “Foi avassalador porque tivemos músicos de orquestras profissionais a participar e, de repente, eu que tinha pouca experiência enquanto maestro, fui para a frente de músicos de uma orquestra.” No primeiro concerto, a sala esgotou, e no ano seguinte fizeram três sessões também com casa cheia. Um ano mais tarde tocaram na Aula Magna e no Tivoli. Depois, em 2014, chega o primeiro concerto no Meo Arena, que se tornou num marco importante para a orquestra..Mesmo quem nunca viu uma orquestra ao vivo têm a música dos filmes e das séries e dos anúncios na sua memóriaNuno de Sá.2014: o ano da mudança.“O concerto no Meo Arena foi um ponto de viragem porque passámos a ter a possibilidade financeira para chamar músicos profissionais. Até então era matematicamente difícil, o dinheiro que fazíamos servia para pagar e investir nos concertos seguintes. A partir do momento em que num só concerto tivemos uma assistência de 3500 pessoas, a matemática ficou diferente.” No ano seguinte, 2015, foram a palco com os concertos das músicas dos filmes da Disney, em duas sessões com 4500 pessoas cada. Em 2018 esgotaram o Campo Pequeno e em 2019 tiveram “o melhor ano de sempre”, com uma série de concertos e parcerias, entre os quais Carmina Burana com a companhia catalã La Fura dels Baus. E depois veio a pandemia. Mas, tal como todos vivenciamos, o mundo aos poucos regressou à normalidade, e foi a partir daí que Nuno e Francisco fizeram evoluir o seu projeto para lá de uma orquestra que toca músicas de filmes. Atualmente, além dos concertos, quer em arenas ou locais mais pequenos, fazem eventos privados, criaram uma academia de artes performativas e um coro e ainda organizam residências artísticas no verão para jovens. .A memória afetiva dos filmes.É sabido que o número de concertos com músicas de filmes tem aumentado nos últimos anos, sempre com sucesso junto do público português. Para 31 de março de 2026 está já agendado o concerto de Hans Zimmer, talvez o mais profícuo criador de bandas sonoras da atualidade, em filmes como Gladiador, Batman, Dune, entre outros. De notar que a Orquestra Gulbenkian tem apostado neste “segmento” e organizado vários concertos sobretudo com a música de John Williams, criador das bandas sonoras de Star Wars, ET, Tubarão ou Jurassic Park.Para o maestro Nuno de Sá, o sucesso da LFO deve-se, sobretudo, às memórias afetivas que todos criamos com os filmes. “Os filmes realizados pelo Spielberg, a saga Harry Potter, entre outros, estão no imaginário das pessoas, e mesmo quem nunca viu uma orquestra ao vivo tem a música dos filmes e das séries e dos anúncios na sua memória. Toda a gente reconhece o tema do Indiana Jones.” Além disso, “no nosso repertório incluímos também canções, como a do filme Frozen ou a do 007- Skyfall, e as pessoas lembram-se quando viram o filme. Eu, por exemplo, tenho uma memória clara da primeira vez que vi o filme Indiana Jones e os Salteadores da Arca Perdida, tinha seis anos”. Para o maestro ainda existe outra camada que pode ser acrescentada ao sucesso dos concertos da LFO: “A forma como todo o espetáculo é construído, com luzes, som, fogo… isso gera uma espécie de memória de concertos rock aos quais muitos já foram, mas, ao mesmo tempo têm à sua frente uma orquestra com os músicos de fato e abas de grilo, isso tudo misturado ajuda a criar uma memória positiva.” .Mais do que um concerto, uma experiência.São os vários momentos já indicados, para lá da música, que fazem com que os concertos da LFO sejam a tal “experiência”, como indica o maestro Nuno de Sá. “O concerto [deste sábado] foi preparado para ser uma experiência não só pela música, mas por toda a envolvência, o fogo, os confetes, a interação com o público, há um lado de show muito presente. No total serão 120 pessoas em palco: 60 elementos do coro, 56 músicos da orquestra, mais 20 elementos da nossa Academia e os nossos três cantores, Diogo Beatriz Santos, Vânia Blubird e Patrícia Duarte.Presentes na sala de ensaio, Vânia e Patrícia explicaram os seus papéis no espetáculo deste sábado, entre a “multidão” de artistas em palco. “Nós somos só as vozes que navegam por cima do mar que eles, os instrumentos, criam para nós. Temos de estar todos muito focados no objetivo comum, e todos a trabalhar para o mesmo. É quase como uma linha de montagem, cada um tem a sua tarefa, a sua função muito específica para que o todo funcione. E cada cantora tem o seu papel bem definido em palco”, explica Vânia Blubird, que acrescenta: “A Patrícia [Duarte] é contralto e eu sou soprano, eu tenho uma voz mais aguda, mais leve, e por isso conseguimos chegar a registos muito diferentes, mas, juntas, as nossas vozes colam muito bem”, diz a cantora.Patrícia Duarte elucida: “A Vânia como é atriz canta mais temas de teatro musical, por isso não cantamos os mesmos temas, é muito raro acontecer, contudo fazemos duetos, como no tema Kiss From a Rose [do Batman Forever (1995)], precisamente porque temos timbres muito diferentes.” Para a cantora, um dos maiores desafios para o concerto de amanhã será a interpretação da música da banda sonora do filme Dune (2021), do realizador canadiano Dennis Villeneuve. “É muito tribal, a voz funciona como um instrumento. Vai ser um grande desafio!”, diz Patrícia. .O futuro .Depois do concerto do Meo Arena, a LFO já tem outros espetáculos agendados, como a atuação no dia de aniversário do Cinema São Jorge, no final de fevereiro. “Vamos tocar ao vivo a música do A Quimera do Ouro/Gold Rush (1925), do Charlie Chaplin, enquanto o filme é exibido.” Depois seguir-se-á um concerto nas Caldas da Rainha, que vai ao encontro de um dos objetivos que Nuno de Sá e Francisco Santiago querem ver acontecer com maior assiduidade: concertos fora das grandes cidades. “No dia da criança, tocamos o concerto da Disney, no Tivoli. Se juntarmos todas as coisas que acontecem, entre eventos privados, o coro, a academia, os espetáculos da academia, já temos a agenda muito preenchida até ao final do ano.” Por agora, ou melhor, para este sábado, está prometida a viagem pela memória dos nossos filmes preferidos. filipe.gil@dn.pt