“O cinema ensinou-me a viver e a vida ensinou-me a fazer cinema”
História do cinema
História do cinema é a história da ficção no século XX. A ficção no Ocidente, escrevi aliás um livro sobre isso chamado Futuro da Ficção (2o12) - não é para estar a fazer propaganda porque o livro está esgotado -, mas onde refletia precisamente sobre isso. Ou seja, há uma coerência na história da ficção no Ocidente que vem desde Homero, dos trágicos gregos, da Epopeia e da comédia, mas também de latinos e da tradição judaico-cristã e que impregnou toda a ficção no Ocidente. E quando falo de ficção falo de romance, de teatro, de pintura, de ópera, e de cinema. O cinema foi no século XX a grande arte, o grande veículo da ficção. Sobretudo na América, por causa das duas guerras, mas também na Europa. E uma das coisas de que me apercebi foi que os grandes períodos de apogeu de determinadas artes nunca duram mais de 80 anos, que é praticamente o tempo de uma vida humana. Foi assim com o Renascimento, foi assim com a ópera, foi assim com o teatro no tempo de Isabel I, e o cinema não escapou a isso. O cinema é uma arte que teve uma aura e uma influência sobre a sociedade absolutamente incrível e que produziu grandes obras-primas, grandes autores. No princípio foi uma arte nova mas acabou nos anos1990 com o aparecimento quer de novas formas de produção - sobretudo com a revolução digital -, quer de novas formas de comercialização. E, portanto, o cinema hoje acabou, como acabou a ópera, como acabou a pintura, são coisas que acabaram.
O cinema continua a fazer-se e continua a fazer-se ficção audiovisual, sobretudo nas séries de televisão onde está concentrada a maior criatividade. Mas o cinema como veículo da ficção que influencia os comportamentos das pessoas e das sociedades acabou e, nesse sentido, estamos num vazio total. É uma época de vazio cultural, onde há centenas, mesmo milhares, de pequenas produções, uma pulverização da ficção audiovisual que não conseguiu ainda recriar aquilo que foram os grandes autores. Atualmente não há autores no cinema, acabou.
O estado da Cultura
Uma desgraça absoluta, absoluta! Mas, por exemplo, no romance temos excelentes escritores. E também existem alguns bons arquitetos. A arquitetura é talvez a única arte que, sendo uma arte prática e funcional, se mantém ao longo dos tempos, porque as pessoas precisam de viver em casas. Os modelos e a estética vão-se alterando mas a funcionalidade não. E, portanto, temos grandes arquitetos, temos grandes escritores. No outro dia, fui ao Algarve e andei às voltas por rotundas e não há uma escultura que se aproveite. E, portanto, a escultura e a pintura perderam a funcionalidade. A partir do momento em que perdem a funcionalidade, desaparecem, são exercícios de estilo. Pode haver até uns tipos geniais, mas a escultura deixou de ter a função que tinha. Como a ópera, por exemplo, costumo dizer que se o Mozart nascesse em meados do século XX, tinha uma banda rock, não ia fazer ópera. No romance sim, até porque é aquele que depende menos de apoios públicos.
Infelizmente, até hoje, desde o 25 de Abril que não há um único ministro da Cultura que tenha percebido que a prioridade devia ser o livro, a leitura, a tradução, a exportação e o apoio aos editores. O apoio à leitura desde a escola. Não há nenhuma política, portanto, os editores sobreviventes são heróicos. Há um fenómeno curioso nunca se escreveu tanto no mundo e nunca se leu tão pouco.
No caso português, há excelentes romancistas, sinceramente. Mas o teatro não existe, estou a falar de dramaturgia, porque uma coisa que as pessoas não percebem é que não há teatro sem dramaturgia. Portanto, atualmente temos um teatro que existe, com grandes atores, bons encenadores, etc., mas as pessoas não se dão conta de que não há uma dramaturgia portuguesa. A maior parte das peças são peças traduzidas. Portanto, a influência que o teatro teve durante muito tempo na sociedade desapareceu também. O cinema português é o caso mais dramático de toda a Europa e, provavelmente, da maior parte das democracias. Portugal é o país da Europa que tem menos espetadores para filmes nacionais.
Temos dez vezes menos do que a média europeia e somos aquele em que há menos investimento, os filmes têm muito pouco dinheiro. Não quer dizer que não haja talento, porque temos argumentistas muito talentosos, atores, até temos técnicos absolutamente fantásticos, mas, no entanto, não temos condições para filmar e foi o único setor em que o 25 de Abril não se sentiu, porque continua a ser um grupo de cinco crânios que decidem o futuro dos cineastas. São cinco júris, formados por pessoas que podem ser excelentes na sua profissão, professores, professores das escolas de cinema, pessoas que acabaram de fazer mestrado em comunicação social ou críticos de cinema. Mas são esses cinco crânios que decidem o futuro dos cineastas. Portanto, nunca sei se posso voltar a filmar. E, por exemplo, o Fonseca e Costa teve 11 ou 12 anos a ser reprovado pelos júris, assim como o Cunha Telles também, e morreram os dois a filmar. Este é um sistema completamente anacrónico. E, como disse, em relação a quase tudo o que possa dizer, a crise não é exclusivamente nacional mas no caso português é particularmente grave. E ao longo de 50 anos ninguém ousou olhar de frente para esse problema e temos uma classe que também protesta pouco porque sobrevive... tem de sobreviver.
TAP
A TAP foi um dos maiores crimes que se cometeu no governo de Passos Coelho, com a bênção de Cavaco. Foi a maior catástrofe que houve em Portugal desde o 25 de Abril, porque serviu exclusivamente para, na sequência da crise da bolsa, da crise do Lehman Brothers e dos efeitos da desregulação da bolsa, em que tivemos de pagar os chamados PIGS. Não é por acaso que nos chamavam PIGS – Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha (no inglês, Spain) –, quer dizer porcos. Atacaram os países com economias mais débeis e democracias mais recentes, mais frágeis. E serviu exclusivamente para a chamada austeridade, serviu para entregar em mãos estrangeiras todas as nossas empresas estratégicas.
A par de Portugal só a Grécia foi também obrigada a isso. Mas não há mais nenhum país que tenha entregue a eletricidade ao governo chinês, que tenha vendido os correios, os aeroportos, ainda por cima por valores completamente radicais. Foi talvez a maior onda de corrupção que houve em Portugal. Sobre a TAP não vou aqui alongar-me sobre isso, mas o valor estratégico e o valor económico da TAP é uma coisa de tal maneira enorme, que é preciso bom senso, lucidez e não ceder à onda neoliberal que acha que o Estado deve sair da frente, deve servir apenas para pagar as falências das empresas privadas. Sou por um mercado regulado, não sou por um mercado em que a corrupção e a ganância dominam tudo.
Pandemia
Há duas lições da pandemia. Uma é terrível, aliás, se quiser há três. Uma foi a que deu lugar às teorias negacionistas – não descarto nenhuma hipótese perversa em relação a qualquer desses fenómenos, sei o que é o poder da indústria farmacêutica, sei essas coisas todas, mas a verdade é que houve uma pandemia, uma pandemia brutal e que vi morrer alguns dos meus amigos antes da vacina, vacinei-me, fui pragmático. E a verdade é que a vacina, e com certeza que houve grandes negócios, serviu apesar de tudo para minimizar os custos em vidas humanas da pandemia.
A outra coisa é negativa, e há uns teóricos das conspirações que dizem que foi criada para isso, para permitir perceber como as pessoas, se forem alarmadas, obedecem. Mandaram-nos ficar em casa, tomar a vacina, mandaram-nos fazer tudo, e as pessoas obedeceram completamente. Isso é um teste um bocado inquietante, significa que, noutras circunstâncias, podem-nos vender uma história qualquer...Mas esse teste da obediência civil é um bocadinho inquietante. A última coisa, é que permitiu às pessoas, àquelas que são mais lúcidas, perceber que afinal há muitas coisas que são dispensáveis. Para viver não precisamos de tantas coisas, porque a maior parte das coisas é que nos convidam a gastar dinheiro são altamente supérfluas.
A crítica
A maior desgraça das artes. É evidente que vamos falar de generalidades e não podemos generalizar a crítica. Há duas ou três pessoas, ou talvez mais, quer no âmbito da literatura, quer do cinema, que sabem o que dizem, mas são uma minoria. E quando digo às pessoas, e não sabem se estou a brincar ou se estou a falar a sério, que durante uns 30 anos nunca vi um mau filme, perguntam-me porquê? Respondo que havia autores e hoje não há. O paradoxo é que se fala nos filmes de autor. Os grandes autores eram o Chapman, o Hitchcock, o Fellini, que eram altamente populares. Hoje, se um filme tem público é imediatamente um filme comercial. Por exemplo, tenho pagado muito caro ter feito 12 filmes, é ridículo. E como eu, muitos, muitos colegas meus, talentosos, da minha geração e de outras gerações. Mas a verdade é que atualmente há muito poucos autores na história do cinema.
E esta coisa de chamar filme de autor a um filme que é feito para os amigos, que não tem público e que para ser visto precisa de um manual de instruções, é um absurdo total. Eu vejo dez minutos do Hitchcock e percebo logo que é Hitchcock, mesmo que não conheça o filme, ou Rossellini, ou Fellini. E, portanto, esta dicotomia que se estabeleceu absolutamente absurda entre se um filme tem sucesso é imediatamente rotulado comercial foi trágica, e a responsabilidade da crítica é enorme. Eu hoje vou pouquíssimo ao cinema por uma razão muito simples, não sei que filme é que vou ver. Não vou ver um filme de autor porque não há autores. Vou ver um filme que a crítica, e que os críticos dão cinco estrelas e não vou ver aqueles a que dão bola preta. Mas já me aconteceu enfiar barretes durante um ano não voltar ao cinema. Acho que a situação é absolutamente trágica, mas é um sinal dos tempos.
Inteligência artificial
Acho que é uma das maiores ameaças para a humanidade, acho que é utópico pensar que se pode combater. A humanidade só reage. Vamos lá ver, há uma coisa que a maior parte das pessoas não pensam, e isto não é arrogância, é a minha experiência pessoal. A ciência esteve durante séculos ao serviço da humanidade, hoje a ciência não está ao serviço da humanidade, isto é a primeira coisa, é um negócio à parte. A segunda coisa, as grandes conquistas que me fazem identificar com o Ocidente, que foram as conquistas pela liberdade, pelos direitos, pelo direito à curiosidade, pelo laicismo, por essas coisas todas, e aquilo que nós chamamos de progresso, quer do ponto de vista das ideias e da democracia, quer do ponto de vista científico, do progresso, que foram extraordinárias, tiveram sempre custos absolutamente colossais, foram verdadeiras catástrofes.
O que sinto, e parece-me de uma lógica que se pode dificilmente rebater, é que a inteligência artificial, pelo menos durante bastante tempo, vai ter efeitos devastadores na civilização, nas liberdades, na democracia, em tudo. Aliás, já estamos a vê-los, de uma certa maneira.
Plataformas de streaming
Há uma distinção entre modelos de produção e modelos de comercialização. O cinema deixou de ser único e hegemónico. Houve uma época, 70 anos, estou a dizer um número aproximado, em que a ficção audiovisual era o cinema e era em sala. Depois, durante um período, continuou a ser o cinema, mas era em sala, primeiro, a seguir em vídeos e depois nas televisões (...) O cinema, depois, por razões que não vale a pena enunciar, foi deixando de ser o veículo privilegiado da ficção cinematográfica. Atualmente, em termos de produção, produzem-se séries, e em grande quantidade. E em termos de difusão, a sala deixou de ser o local privilegiado de difusão da ficção audiovisual. Há uma dispersão enorme. O cinema foi feito para as salas, a grande arte audiovisual foi feita para as salas, porque as pessoas não se apercebem mas a sala tem um efeito hipnótico, que não tem a televisão, nem o streaming. Porque o espectador entra na sala, a sala fica escura, há uma luz que se projeta num ecrã, e a partir daí o espectador não mexe mais a cabeça, portanto fica hipnotizado. Depois cabe ao filme mantê-lo hipnotizado. Nos outros sítios não. Você vê o filme, para, volta atrás, acelera e não sei o quê. Portanto, é um mundo que a mim não me interessa nada.
Em termos da indústria audiovisual é evidente que traz avanços, mesmo sem termos daquilo que seria a independência dos realizadores. Por exemplo, nas séries, os grandes autores são os argumentistas não são os realizadores. Há séries em que o realizador vai mudando. É evidente que em termos financeiros é uma adaptação, como em todas as artes teve de haver adaptações. O problema é que, a mim, digamos, esse tipo de produtos interessa-me pouco, quer como realização, quer como difusão. Deixe-me só dizer uma coisa, eu dou aulas de História de Cinema, e uma das coisas que explico às pessoas é que a data considerada como o nascimento do cinema foi em 28 de dezembro de 1895, a primeira exibição em sala dos Irmãos Lumière. Ora, o cinema já tinha sido inventado pelo Edison, que projetava os filmes. Só que o Edison, como era um grande inventor, mas também um grande negociante, exibia os filmes num quinetoscópio em que as pessoas metiam uma moeda e espreitavam para ver o filme. Portanto, era uma fruição individual, como o livro, por exemplo.
E aí os Irmãos Lumière perceberam que o cinema podia ser um grande espetáculo, e, portanto, ser exibido coletivamente, e vender bilhetes para muitas pessoas ao mesmo tempo. E é por isso que o cinematógrafo foi considerado o nascimento do cinema com a projeção dos Irmãos Lumière. Ora, o que nós estamos a assistir hoje é o regresso ao Thomas Edison, ou seja, ao consumo individual. Os miúdos veem os filmes nos telemóveis, nos computadores, e assim por diante. Portanto, o que é que isso teve como efeito? O cinema perdeu não só a aura, de que falava o Walter Benjamin, como perdeu a sua importância como veículo da ficção. E, portanto, esse papel que a ficção audiovisual tinha desapareceu. Não quer dizer que não haja coisas muito boas a serem feitas, mas há uma dispersão enorme.
Inspiração
Bom, as minhas fontes de inspiração para fazer filmes são duas Uma é a minha experiência e também o olhar sobre os outros, a minha observação do mundo e das pessoas. E, obviamente, os autores que me precederam e com quem eu aprendi muito. Costumo dizer que o cinema ensinou-me a viver e a vida ensinou-me a fazer cinema. E, obviamente, que os grandes autores que eu vi marcaram a minha vida, e marcaram também a minha forma de contar histórias. Mas os meus filmes valem o que valem, mas são altamente pessoais. São o fruto de toda essa experiência de leitura e de visão. E quando eu digo leitura é porque nas aulas que dou a argumentistas e realizadores, digo sempre a mesma coisa. A primeira coisa que eles têm de fazer, se querem ser contadores de histórias através de imagens e sons, é, por paradoxal que pareça, é ler os clássicos. Ler, ler. E aprende-se mais a fazer cinema, ou pelo menos a contar histórias, a construir histórias, lendo o Dickens e o Tolstoi do que vendo muitos filmes. Até porque sem o Dickens e o Tolstoi não existia o Griffith, nem existiam os grandes clássicos americanos. Era impossível. Portanto, eles devem tudo à literatura. Porque, como eu lhe disse há pouco, a história da ficção no Ocidente é uma coisa que teve vários períodos e várias formas de expressão artística. O romance foi o grande antecedente do cinema. Portanto, as minhas fontes de inspiração continuam a ser, no essencial, o Dickens e o Tolstoi, e depois tudo aquilo que vou vivendo, que vou vendo, que vou lendo, a minha maneira de olhar para o mundo, a minha experiência, a minha maturidade, o meu envelhecimento, tudo o que é a minha vida que está para trás, aquilo que são as minhas perspetivas, as minhas expectativas, aquilo que é o que eu quero fazer.