Apesar do ano e meio pandémico que passou entretanto, a vitória em dose tripla de Bong Joon-ho nos Óscares continua bem presente. O realizador sul-coreano que, ao lado de nomes como Park Chan-wook, Lee Chang-dong e Hong Sang-soo, é um dos protagonistas do chamado Novo Cinema Coreano, tornou-se um must do panorama cinematográfico internacional, mas ainda há filmes seus que os espectadores entusiastas de Parasitas não tiveram oportunidade de descobrir no grande ecrã. Aproveitando a memória relativamente recente desse triunfo histórico nos prémios da Academia de Hollywood, que sucedeu à Palma de Ouro em Cannes, a retrospetiva de uma mão-cheia de títulos que agora chega a Lisboa (Nimas) e Cascais (Cinema da Villa) traz dois inéditos e uma experiência curiosa: assistir à colisão entre a família pobre e a família abastada de Parasitas... a preto e branco..Mas comece-se pelo princípio. Cão que Ladra Não Morde (2000), primeira longa-metragem de Bong Joon-ho, é um dos inéditos que surge neste ciclo. Aqui, um professor académico com demasiado tempo livre, e incomodado pelo som de um cão a ladrar no seu prédio, vai ao encontro do animal, rapta-o e esconde-o na cave por baixo do seu apartamento, desencadeando um clima de comédia negra que envolve um conjunto de personagens, desde a mulher grávida do protagonista à jovem secretária enfastiada que trabalha no escritório desse complexo de apartamentos. Um filme pouco visto, modesto mas excêntrico, que claramente contém a linguagem idiossincrática de uma futura filmografia, desde logo porque espelha a sociedade contemporânea na sua dicotomia de classes, fazendo do prédio o microcosmo a partir do qual se retrata a espécie humana - sem dúvida, um prédio onde já morava o espírito de Parasitas, e cuja narrativa se reveste do toque essencial do cinema de género..Foi, no entanto, ao segundo filme que o realizador assinou aquela que consideramos ser a sua obra-prima: Memórias de Um Assassino (2003). Também inédito na distribuição portuguesa, este é um olhar avassalador sobre a Coreia dos anos 1980, muito marcada pela violência institucional da ditadura militar, que se vê ser aplicada nos interrogatórios aos suspeitos de uma série de assassinatos na província coreana de Hwaseong. Bong Joon-ho baseou-se neste primeiro caso relatado da existência de um serial killer no país - e em particular, num pequeno meio - para explorar a carga novelesca do trabalho dos detetives. Ou melhor, a tensão entre a sensatez do detetive vindo de Seul e os métodos toscos do detetive de província (que "investiga com os pés"), este interpretado por Song Kang-ho, ator que veio a tornar-se o rosto principal do seu cinema..O que se revela exemplar em Memórias de Um Assassino é o modo como Bong constrói as linhas densas do policial através da obsessão dos protagonistas com a identidade do homicida, ao mesmo tempo que perturba as nossas emoções com um humor sujo, sempre pronto a corroer a tristeza da atmosfera e da paisagem. Imagine-se o Zodíaco de David Fincher com gotas concentradas da perversidade à Hitchcock (uma das referências maiores de Bong Joon-ho). É por aí....Para além das obras iniciais do cineasta coreano, o ciclo contempla Snowpiercer - Expresso do Amanhã (2013), a sua primeira produção em língua inglesa, que juntou um elenco de luxo (Tilda Swinton, John Hurt, Octavia Spencer, Chris Evans, Ed Harris...) dentro de um comboio de alta tecnologia a circular em movimento perpétuo, numa segunda era glaciar, quais passageiros-sobreviventes divididos pela classe social; e ainda Mother - Uma Força Única (2009), regresso ao exímio mal-estar e mistério de um homicídio numa pequena cidade..De facto, Mother, o drama de uma mãe que se desdobra em coragem para provar a inocência do filho, um jovem com problemas mentais acusado de assassinato - bode expiatório perfeito para detetives que só querem "arrumar" as investigações -, não é menos obra-prima do que Memórias de Um Assassino. A diferença reside essencialmente no enfoque íntimo desta mulher, uma mãe de corpo e alma que Bong viu na atriz Kim Hye-ja, destilando a partir dela as sombras escondidas por trás da beleza de uma convicção inabalável. De novo, sombras que recaem sobre a ambiguidade social, por vezes com um traço de humor selvagem. Exemplo? Veja-se como há sempre um momento nos seus filmes em que a concentração de corpos dentro de um enquadramento acaba por rebentar numa coreografia caótica de violência, geralmente em slow motion..Com esta retrospetiva, que deixa de fora apenas The Host - A Criatura e Okja, é possível ao espectador perceber a matéria de que se faz o cinema de Bong Joon-ho, os sinais da sua cinefilia tarantinesca, a apropriação singular da linguagem dos géneros e a inteligente visão social que permeia qualquer uma das suas narrativas empenhadas em dar visibilidade aos que ficam nas últimas carruagens do comboio, para usar a metáfora de Snowpiercer. Afinal estamos a falar de alguém que estudou Sociologia na Universidade Yonsei (por sinal, um centro do movimento pela democracia dos anos 1980) antes de a trocar pela Academia Coreana de Artes Cinematográficas. Alguém que cresceu durante a ditadura militar, sentado em frente ao pequeno ecrã, a devorar filmes americanos, de John Ford e Sam Peckinpah a John Carpenter e Brian De Palma. Digamos que a cinemateca doméstica deu frutos..Para todos os efeitos, o apelo "universal" da assinatura de Bong Joon-ho vem também desses olhos treinados por uma certa cultura americana que molda a sua consciência crítica. Um pouco como a anedota da busca desesperada por wi-fi no início de Parasitas, de que o realizador se serviu, numa sessão do British Film Institute, para responder em modo espirituoso a uma pergunta sobre o sucesso global do filme: "As pessoas simplesmente abrem os seus corações porque a procura por wi-fi é universal." Enfim, a empatia passará por algo mais do que a dependência da vida em rede. Há notas profundas neste cinema..dnot@dn.pt