Originário de Fontana Liri, na província de Frosinone, a cerca de uma centena de quilómetros de Roma, Marcello Mastroianni foi e, em boa verdade, continua a ser a mais universal encarnação do que significa ser um ator italiano. Nasceu há 100 anos, no dia 28 de setembro de 1924 - a sua memória pertence à história e ao imaginário de um cinema europeu que já não existe, quanto mais não seja porque os seus principais centros de produção (incluindo a lendária Cinecittà, em Roma) deixaram de possuir a importância industrial e a aura mitológica que tiveram na segunda metade do século XX..Uma boa prova da sua universalidade é o facto de nos Óscares ter sido nomeado três vezes para melhor ator (nunca ganhou) com filmes exteriores à produção dos EUA. Aliás, com Divórcio à Italiana (1963), de Pietro Germi, conseguiu uma proeza inédita: ser o primeiro ator nomeado nessa categoria graças a uma interpretação num filme estrangeiro (recorde-se que, a partir de 2020, foi adotada a designação de melhor filme internacional)..As duas outras nomeações foram obtidas com Um Dia Inesquecível (1977), de Ettore Scola, porventura a sua melhor composição na companhia de Sophia Loren, e Olhos Negros (1987), de Nikita Mikhalkov, coprodução Itália/URSS inspirada em personagens de quatro contos de Anton Tchékhov, com destaque para A Senhora do Cãozinho (ed. Relógio D’Água, 2022). O belo filme de Mikhalkov pode ilustrar a sofisticada ambivalência da pose e do estilo de Mastroianni, desde o começo da carreira distinguindo-se por uma presença austera, tendencialmente trágica, que nunca pôs em causa o seu gosto pelo registo cómico. Na origem da sua imensa popularidade encontramos mesmo um clássico da comédia italiana: Gangsters Falhados (1958), com Mario Monicelli a dirigir um elenco que, além da figura tutelar de Totò, incluía Vittorio Gassman, Renato Salvatori e a ainda pouco conhecida Claudia Cardinale..Olhos Negros (1987): melodrama em terras russas..Do teatro para o cinema.Como muitos atores da sua geração, italianos ou não, Mastroianni teve uma formação indissociável do teatro, mesmo quando, ao longo da década de 50, já começava a surgir em papéis secundários de cinema. No palco, foi Luchino Visconti que lhe proporcionou algumas performances marcantes, nomeadamente em Um Eléctrico Chamado Desejo, de Tennessee Williams, interpretando Mitch (personagem de Karl Malden no filme de Elia Kazan, em 1951). E foi também Visconti que, ainda antes do impacto de Gangsters Falhados, o integrou no elenco de Noites Brancas (1957), baseado em Dostoievski..1960 seria um ano decisivo na sua trajetória. Primeiro, através do reencontro com Claudia Cardinale no drama O Belo António, de Mauro Bolognini, baseado num romance de Vitaliano Brancati em cujo argumento trabalhou outro nome grande da produção italiana da época: Pier Paolo Pasolini. Depois, com a entrada no universo de Federico Fellini, protagonizando La Dolce Vita, na companhia de Anita Ekberg e Anouk Aimée. Era um mundo perversamente seduzido pelos artifícios da linguagem cinematográfica, expondo o seu “herói” aos enigmas do território feminino - por alguma razão, em 1980, Fellini e Mastroianni revisitaram os temas e obsessões de La Dolce Vita num filme tecido de angústia e melancolia chamado A Cidade das Mulheres..Fellini viria a juntar a sua mulher, Giulietta Masina, e Mastroianni na composição de um par de artistas que vive da reencarnação nostálgica de Ginger Rodgers e Fred Astaire, a lendária dupla dos musicais de Hollywood das décadas de 1930/40. O filme, Ginger e Fred (1986), objeto de amargo desencanto, é um retrato contundente das formas de estupidez favorecidas por alguns registos “espectaculares” do espaço televisivo. Foi o próprio Fellini que o disse numa entrevista (à televisão, curiosamente) realizada, juntamente com Mastroianni, por altura do lançamento de Ginger e Fred: “A televisão criou uma relação diferente entre o espectador e a imagem. Já não é aquela relação intimista, confiante e alegre do grande ecrã, convocando o público como se fosse para uma igreja. A televisão destruiu tudo isso, impondo uma imagem esquizofrénica, uma espécie de caleidoscópio que faz cócegas nos olhos, criando um espectador impaciente e superficial.”.Uma viagem portuguesa.A Noite (1961), com Jeanne Moreau e Monica Vitti: para lá do romantismo..Ao longo de mais de meio século de atividade, a longa filmografia de Mastroianni, por certo com muitos altos e baixos, nunca deixou de ser pontuada por obras originais, envolvendo importantes desafios temáticos e narrativos. Convém não esquecer que, ainda no começo dos anos 60, ele surgiu em mais dois momentos marcantes da renovação (talvez revolução) de alguma produção italiana: A Noite (1961), capítulo vital da nova visão social e afetiva proposta por Michelangelo Antonioni, e Oito e Meio (1963), digressão felliniana pela intimidade de um cineasta que, além do mais, justifica para todo o sempre a classificação de Mastroianni como alter ego de Fellini..A decomposição estrutural e artística de algum cinema italiano, escalpelizada em vários títulos de um cineasta contemporâneo como Nanni Moretti, sobretudo a sua degenerescência televisiva (tal como é mostrada em Ginger e Fred), terão levado atores como Mastroianni a aceitar desafios, no mínimo, insólitos. Lembremos, em particular, dois filmes de 1973: A Grande Farra, parábola existencial de Marco Ferreri sobre quatro amigos que decidem comer... até morrer, e O Acontecimento Mais Importante desde que o Homem Chegou à Lua, fantasia lírica (?) em que Jacques Demy filma Mastroianni como um homem que... engravida!.Viagem ao Princípio do Mundo (1997): filmado por Manoel de Oliveira..Esse sentido do risco teve uma depurada expressão em Viagem ao Princípio do Mundo, de Manoel de Oliveira, filme de um drástico envelhecimento, algures na fronteira da morte, em que a história pessoal do ator se cruza com a filosofia do realizador. Produzido por Paulo Branco, seria revelado no Festival de Cannes de 1997, alguns meses depois do falecimento de Mastroianni, a 19 de dezembro de 1996 - contava 72 anos. No dia da sua morte, a Fonte de Trevi, em Roma, cenário de uma célebre cena de La Dolce Vita, foi coberta de panos negros.