No labirinto da vida e da morte
Teodora Mihai, cineasta de origem romena a trabalhar na Bélgica, faz com a sua primeira longa-metragem, A Civil, um retrato perturbante dos bastidores da luta, no México, contra os cartéis da droga.
A sobrecarga "informativa" dos nossos tempos gerou um certo cinema de narrativas mais ou menos esquemáticas que parecem querer rivalizar com os efeitos sociais da própria conjuntura mediática. Chamemos-lhe: síndrome Netflix. O seu valor principal é o "tema", muitas vezes definido a partir de personagens capazes de "simbolizar" as suas principais ramificações - na prática, o cinema fica reduzido a uma lógica "ilustrativa", mais ou menos de telefilme, quase sempre desembocando num desenlace redentor.
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A Civil, de Teodora Mihai, é um objeto exemplar dessa tendência que, felizmente, ao contrário de muitos outros, se distingue pela capacidade de colocar em cena um bem elaborado dispositivo cinematográfico. Que está, então, em jogo? O desaparecimento de uma jovem, algures numa zona do nordeste mexicano; a sua mãe, Cielo, é avisada por dois rapazes que ela foi raptada, exigindo uma elevada quantia para a libertarem... O certo é que a jovem não reaparece, levando Cielo a empreender uma busca em que nunca é claro quem está do seu lado...
O filme tem qualquer coisa de labiríntico: entre as ameaças de um cartel da droga e a patrulha militar que tenta encontrar a sua filha, Cielo atravessa as cenas de um verdadeiro pesadelo em que a vibração da vida pode valor tanto (ou tão pouco) como a irrisão da morte. E esse labirinto é tanto mais envolvente quanto tudo, mas mesmo tudo, é encenado a partir do ponto de vista de Cielo - um pouco à maneira de um filme dos irmãos belgas, Luc e Jean-Pierre Dardenne.
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Enfim, esta referência não é acidental, já que os Dardenne surgem na lista de produtores de A Civil. Aliás, as origens do filme têm também qualquer coisa de labiríntico, já que a realizadora Teodora Mihai é de origem romena, está ligada à produção da Bélgica e conta, aqui, uma história visceralmente mexicana. A Civil resulta, enfim, de uma coprodução Bélgica/Roménia/México.
Interpretada pela brilhante Arcelia Ramírez, Cielo define-se, assim, como aquela que quer ver e saber, ao mesmo tempo que parece não poder resistir às camadas de violência e absurdo com que o quotidiano a vai presenteando. Daí que o filme se distinga por uma estranha e sedutora ambiguidade: por um lado, toda a sua ficção é conduzida pelos olhares e gestos da própria Cielo, guia incauta para uma realidade que, obviamente, a ultrapassa; por outro lado, essa desencantada deambulação é tratada com "efeitos de câmara" que, ainda que de forma contida, não deixam de sugerir uma arquitetura documental.
Premiado em Cannes/2021, na secção "Un Certain Regard", A Civil distingue-se, enfim, pela capacidade de gerar momentos de grande tensão emocional, sem nunca recorrer às montagens "aceleradas" e aos sons histéricos com que, hoje em dia, tantas vezes se confunde a linguagem cinematográfica. Sendo esta a estreia na longa-metragem de Teodora Mihai, não será deslocado supor que o seu conhecimento das possibilidades de uma câmara de filmar definem, desde já, uma cineasta de corpo e alma.

dnot@dn.pt
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