Com uma rivalidade inesperada de um novo festival (Tribeca) apoiado pela mesma autarquia, o Doclisboa, com nova direção, tenta renovar-se sem perder o prestígio que lhe deu uma fama merecida a nível internacional. Pretende, mais do que nunca, ser um retrato da contemporaneidade, sempre próximo do humano, nos seus contrastes e singularidades. Esta edição já com a chefia da mexicana Paula Astorga parece estar perto de uma ideia de continuidade com o bom trabalho feito em anos anteriores, mesmo com os desafios que uma programação arriscada comporta para as contas dos bilhetes vendidos..Mas o Doclisboa é muito mais do que um festival para “faturar”. Faturam-se ideias, encontros e uma vontade de revelar tendências..Nesta maratona de filmes que dialogam com as expressões mais filosóficas, sociais e conceptuais, salta à vista uma aposta ainda mais no risco. Uma edição número 22 com preocupação em honrar o legado de Augusto M. Seabra, programador e crítico que foi um dos nomes fortes na História do festival. Aliás, o festival é mesmo dedicado à sua memória..Um Korine para além do radical.'Aggro Dr1ft', de Harmony Korine, o filme de ficção que o Leffest, IndieLisboa ou o Doclisboa do ano passado terão deixado escapar....E é precisamente na secção Riscos que há um dos bilhetes mais quentes da programação, o penúltimo de Harmony Korine. Chama-se Aggro Dr1ft e foi uma das perdições de Veneza 2023. É uma história de violência da América de hoje, centrada numa ideia de conceito de videoplayer, onde acompanhamos o movimento de uma criminoso na Florida. O cineasta de Spring Breakers encontra uma ideia de invenção formal que provoca e exaspera mas que é fascinante na estética sensorial. Só é pena não vir acompanhado de Baby Invasion, o mais recente de Harmony Korine, uma espécie de sequela ainda mais radical que nos coloca em pleno lugar de um jogador de sala de jogos multiplayer. Feliz o festival que consegue Korine..Nas competições nacionais e internacionais, temos antestreias mundiais e uma mão cheia de filmes apetecíveis, em especial com os portuguesas. Empolga esperar por Espiral em Ressonância, de Filipa César e Marinho de Pina e, sobretudo, a estreia nas longas de Marta Mateus, Fogo do Vento, peregrinação ao Alentejo que vem com bons ventos do Festival de Locarno..Curiosidade significativa também para o regresso de André Gil Mata com Sob a Chama da Candeia, já com estreia garantida nos cinemas para breve, e Enxofre, da dupla luso-brasileira Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes, cineastas que os habituais frequentadores dos festivais já têm tido contacto. Nesta competição, há um golpe de coração evidente: As Noites Ainda Cheiram a Pólvora, de Inadelso Cossal, uma das maiores revelações da Berlinale, um ensaio sobre as feridas da guerra civil em Moçambique com vénia declarada a Pedro Costa..Para quem anda à procura de títulos mais mediáticos, a programação não se esqueceu de Lula, o documentário de Oliver Stone que é uma carta de fã ao atual presidente do Brasil, nem TWST - Things We Said Today, do romeno Andrei Ujicã, às voltas com uma passagem dos Fab Four por território americano..Pai e filho.Na secção Heart Beat há uma espécie de “negócio de família”: duas obras da família Varela Silva. O Diabo do Entrudo, de Diogo Varela Silva, o pai, e Ressaca Bailada - Filme Concerto, de Sebastião Varela, o filho. Duas médias-metragens da Hot Chilli, produtora da família. Mas é o realizador de O Diabo do Entrudo que é o primeiro a não se sentir à vontade com o termo “negócio de família”: “preferia não ir por aí mas estou mesmo muito feliz pelo Sebastião ter sido selecionado”. E vamos então entrar pela Ressaca, neste caso a ressaca dos Expresso Transantlântico, banda de Sebastião, realizador e músico. Trata-se de um filme-concerto sem público e com momentos de ficção em torno do ambiente que o último disco da banda de Lisboa convoca. Uma prosápia de imaginários retro, marítimos e sobrenaturais com atores como Rita Blanco, Laura Dutra ou Vincent Wallenstein a desfilarem perto de um palco num ambiente abandonado a cheirar a mar (ou a mofo…). A beleza das imagens cola-se ferozmente aos sons da banda e é quase orgásmico o momento Conan Osiris. Quem não o apanhar agora no Doclisboa, pode fazê-lo nas salas de cinema quando mais tarde chegar ao circuito comercial (sim, outra média nas salas)..Em O Diabo no Entrudo, Diogo Varela Silva torna-se careto convidado da tradição carnavalesca de Lazarim, a terra transmontana que continua a celebrar o entrudo de forma milenar e sem cedências a turistas. A câmara vagueia pela aldeia, mostra as histórias do passado, usa e abusa das velhinhas adoráveis com sotaque e não deixa passar a feitura dos trajes e máscaras, mas o que fascina mais neste filme que não tem medo do drone é a forma como parece possuído pelo demónio. Um demónio carismático e cuja estética de embelezamento vai contra os atuais ditames do chamado “cinema do real”..“Acho fascinante tudo aquilo, em especial a forma de construção das máscaras. São artesãos espetaculares! Todo o trabalho feito nos fatos, nas máscaras que são todas feitas numa única peça de madeira fascinam-me! Aliás, esse trabalho é de mestre e nos fatos usa-se tudo o que a terra dá - quase que nem há plástico. É tão bonito”, salienta o realizador que avisa ter as costas largas para quem implicar com esta sua viagem ao rural com cuidados estéticos e uso de drone: “o drone que utilizo na maior parte das vezes é fixo. Dá um ponto de vista onde a câmara não ia. Enfim, há maneira de utilizar drone em cinema e… maneira de utilizar drone em cinema. Não é nada publicitária a maneira como utilizo o drone, antes pelo contrário. Aqui não há drone para a frente e para trás”..Entre Lazarim e a Lisboa dos Expresso Transantlântico, o Doclisboa fica bem com o cinema dos Varela…