Qual a relação do mercado cinematográfico com as memórias dos filmes? Neste momento de prudente otimismo, podemos dizer que nem tudo está perdido. Exemplo imediato: a reposição da cópia restaurada de Ossos, de Pedro Costa, uma produção de Paulo Branco (Madragoa Filmes) estreada em 1997 - a nova cópia (4K) resultou da digitalização do negativo de 35mm e da mistura de som digital, materiais conservados pela Cinemateca..Por contraste e ironia, lembremos que Ossos surgiu num contexto em que, no seio das forças mais poderosas da indústria e do comércio, o espectáculo cinematográfico tinha chegado a uma fronteira problemática em que a sofisticação dos meios de produção coexistia com a possibilidade de desagregação dos valores clássicos do próprio consumo dos filmes - também lançado em 1997, Titanic, de James Cameron, ficou como símbolo ambivalente dessa conjuntura, determinando tudo o que, para o melhor e para o pior, se seguiu..Ora, ainda que inequivocamente exterior a tal conjuntura, o trabalho de Pedro Costa continha uma resposta, ou melhor, um contraponto às suas componentes - e também aos efeitos dessas componentes na conceção do que era, ou podia ser, um espectador de filmes..Assim, há em Ossos a vertigem ancestral, delicadamente depurada, das narrativas trágicas. A história de Tina (Maria Lipkina) é, de uma só vez, o retrato angustiante da sua nova condição de mãe e a crónica concisa da vida de miséria no Bairro das Fontainhas. Para Pedro Costa, esta foi a “continuação” cinematográfica e afetiva da experiência de Casa de Lava, rodado três anos ante em Cabo Verde. Mais do que isso, Ossos seria o primeiro capítulo de um labor de intimidade que se prolongaria nos destinos erráticos dos habitantes das Fontainhas (depois da demolição do bairro) através dos filmes No Quarto da Vanda (2000) e Juventude em Marcha (2006)..Tudo isso tem sido muitas vezes descrito como uma aliança peculiar entre as duas vertentes fundadoras do cinematógrafo: a ficção e o documentário. Os filmes de Pedro Costa seriam ficções com componentes documentais. Em boa verdade, tal “fórmula” reflete a pluralidade de um sistema narrativo que não é estranho a várias heranças (não apenas cinematográficas, mas também pictóricas, por exemplo). Em todo o caso, será redutor ver Ossos e os filmes que se seguiram como histórias “inventadas” a que se acrescentou alguma “verdade” documental. O cinema de Pedro Costa é um território de afirmação de uma escrita visceralmente poética em que as barreiras convencionais (ficção/documentário) vão perdendo pertinência. Será preciso acrescentar que isso envolve também um desafio radical ao “naturalismo” demagógico, culturalmente dominante, de muitos formatos televisivos?.Fogo & música.Ao longo dos anos, Pedro Costa foi dizendo, sempre de forma discreta, que a possibilidade de fazer um filme musical era algo de sedutor. Aliás, convém não esquecer que ele realizou Ne Change Rien (2009), com a atriz/cantora Jeanne Balibar, objeto fascinante que tem algo de espírito musical cruzado com a secura de uma cerimónia religiosa, algures entre a pompa da ópera e o experimentalismo de um videoclip..Atrevo-me a pensar que a sua curta-metragem As Filhas do Fogo - produção de Marta Mateus (Clarão Companhia), revelada no Festival de Cannes de 2023, integrando agora o programa de relançamento de Ossos - nasceu do continuado interesse por essa possibilidade. E também de uma nova visão caboverdiana. Estamos perante três irmãs (interpretadas pelas cantoras Elizabeth Pinard, Alice Costa e Karyna Gomes) separadas pela erupção do vulcão do Pico do Fogo, de alguma maneira unidas pela energia primitiva das matérias musicais. Nos seus austeros nove minutos de duração, As Filhas do Fogo consegue ser um pequeno prodígio visual e sonoro que reinventa uma ideia mágica, também ela primitiva, do espectáculo num ecrã de cinema..Para já, As Filhas do Fogo e Ossos vão estar em Lisboa (Nimas) e Porto (Teatro Campo Alegre e Trindade), com exibições agendadas também para Coimbra, Setúbal, Braga e Figueira da Foz. Este é, além do mais, um reencontro saboroso com um modelo de exibição em que a longa-metragem é precedida por um “complemento” (entenda-se: uma curta) - dar a ver o grande cinema é também preservar algumas formas tradicionais de programação.