O que é um grande filme? Qualquer resposta, por maior que seja a sua boa vontade, corre o risco de favorecer algum lugar-comum para consumo mediático. Aliás, a moda está instalada, tornou-se mesmo um padrão artístico e um vício jornalístico: por vezes, parece mesmo que um filme (mas acontece também com peças de teatro, livros, etc.) já não é um filme, mas apenas um pretexto descartável para ilustrar os clichés do politicamente correcto, seja a “rebeldia” dos jovens, seja um qualquer “protesto” para consumo acelerado. Digamos que um grande filme começa por nos solicitar uma pausa. E uma pergunta: mas, afinal, o que é “isto” que eu estou a ver? Miroirs Nº 3, do alemão Christian Petzold, é um desses filmes — glorioso como um fogo de artifício, recatado como um gato adormecido. Mesmo sem revelar demasiado ao leitor que ainda não conheça o filme, convém começar por dizer que o título não é uma “chave” misteriosa a solicitar um esforçado exercício de decifração. Remete para Miroirs (à letra: “Espelhos”), uma suite composta pelo francês Maurice Ravel em 1904-05. São cinco peças para piano, cada uma com o seu título — a Nº 3 (“Une barque sur l’océan”) surge no filme, não exactamente como “música de fundo”, mas tocada pela personagem central, Laura, interpretada pela sempre exemplar Paula Beer (atriz alemã, nascida em 1995) que conhecemos de outros títulos de Petzoldt, incluindo Undine (2020), ou ainda através de Frantz (2016), de François Ozon, e Nunca Deixes de Olhar (2018), de Florian Henckel von Donnersmarck. Os cinéfilos incuráveis (condição precária do autor deste texto) talvez não possam deixar de evocar a mitologia do nome “Laura” na história do cinema, pensando no filme — Laura, precisamente — que Otto Preminger realizou em 1944, eternizando a imagem de Gene Tierney no papel central. O paralelismo não serve de explicação para o que quer que seja, mas não deixa de ser sugestivo, até porque faz algum sentido dizer que Preminger colocava a sua Laura num jogo de espelhos (sem a música de Ravel...) que desencadeava uma teia de ambivalências a que o filme de Petzold está longe de ser alheio. Como defini-la? Digamos que o cinema nos mostra um espaço em que se vive o tempo de uma história, mas há cineastas capazes de nos fazer sentir que o espaço vacila e o tempo, linear por natureza, talvez não seja uma “coisa” natural. Que acontece, então? Laura estuda piano em Berlim e tem como companheiro o talvez instável, talvez inocente, Jakob (Philip Froissant). Laura terá um acidente de automóvel num cenário rural por onde já tinha passado, aliás numa passagem que deixa no espectador a sensação de que aquele será o lugar de algo que está para acontecer... Será a força do destino? Enfim, simplificando, Laura é acolhida por um casal com um filho, numa casa solitária com uma oficina, acabando por ali permanecer numa espécie de exílio curativo que ninguém programou — como se ela estivesse a cumprir um destino sem explicação nem racionalidade. Sentir e pensar Quanto mais Petzold carrega o seu filme com índices do mais básico naturalismo — beber um chá é apenas beber um chá, o sol reaparece todos os dias no horizonte —, mais o espectador vai sentido, porventura vai pensando (mas será, no fundo, a mesma coisa), que assiste ao teatro secreto de um conjunto de personagens que escaparam a qualquer determinação social. Como se Miroirs Nº 3 fosse a concretização de uma utopia que também ninguém formulou — uma fuga para a frente, em que vida e morte talvez existam fundidas num único sonho. Miroirs Nº 3 é, muito literalmente, um objeto fora do tempo, deste tempo e das suas modas. Não é um acontecimento abstrato, entenda-se, até porque Petzold possui a paixão primitiva das formas e das cores, dos corpos, dos rostos, dos breves instantes em que um olhar diz aquilo que resiste a chegar ao som das palavras. O director de fotografia, Hans Fromm, colaborador regular de Petzold, é mesmo um apaixonado pelos elementos na natureza, reinventando-a em imagens cuja beleza paradoxal nos leva a perguntar o que é o realismo. .'Adeus, June'. Uma família entre palavras e silêncios.'13 Dias, 13 Noites'. Memórias do último Festival de Cannes