"Aqui está o meu Fernando Pessoa, à espera de poder viajar de Bucareste para Lisboa”, diz o escultor Mircia Dumitrescu. Estamos no jardim do palácio na rua Nicolae Cretulescu que é um dos edifícios do Museu Nacional de Literatura Romena, e quem está a fazer de intérprete do romeno para o português é o jornalista, ensaísta e poeta Dinu Flamand. “Está quase tudo tratado. Só falta mesmo a estátua ir para Portugal”, acrescenta Flamand, também tradutor de escritores portugueses como o próprio Pessoa ou António Lobo Antunes. De seguida, Dumitrescu guia-me até um outro recanto do museu para mostrar o gato, também em bronze, que é suposto acompanhar Pessoa até Portugal e fazer-lhe companhia. “O que nós gostávamos era que o poeta e o gato fossem instalados num pequeno largo que há perto da Casa Fernando Pessoa, assim como se estivessem a andar para lá”, explica Flamand. A proximidade do português e do romeno, duas línguas latinas, também o gesticular entusiasmado do poeta romeno, ajudam o escultor a entender o que está a ser falado. “Da, da”, “sim, sim”, diz o artista plástico, um homem de 84 anos, com mais de seis décadas de carreira, membro da Academia Romena, apaixonado tanto pela poesia de Pessoa como pela própria história de vida do grande escritor português. . A conversa começou noutro polo do Museu Nacional de Literatura Romena, na rua Grivitei, onde Dumitrescu tem um ateliê num dos pisos e uma pequena oficina noutro. Além de Flamand, tenho ajuda na interpretação de Gelu Savonea, arquiteto que foi vice-diretor do Instituto Cultural Romeno de Lisboa, outro apaixonado por Portugal, ao ponto de ter uma tese de doutoramento sobre a arquitetura racionalista portuguesa, entretanto publicada em livro. Dumitrescu cumprimenta-os efusivamente, e é com um sorriso de grande simpatia que me aperta a mão quando sou apresentado. Por entre pinturas e esculturas, põe numa mesinha croissants com chocolate para os quatro e pede que puxemos as cadeiras. “Foi Dinu Flamand que me apresentou a poesia de Pessoa e especialmente O Livro do Desassossego. Gostei muito. Não percebo como estive tantos anos sem conhecer este poeta português. Comecei a lê-lo só há uns dez anos. Sinto-me também muito inspirado pela vida dele. E adoro os heterónimos”, conta Dumitrescu, agora com a interpretação a ser feita por Savonea. Há muito que Flamand se interessou por Pessoa. Traduziu O Livro do Desassossego e inúmeros outros escritos, pois a série Pessoa que editou em romeno conta já com nove livros traduzidos por si. Numa entrevista que lhe fiz há uns anos, em Lisboa, Flamand contou a curiosa história de como no tempo ainda do regime comunista, que foi derrubado em finais de 1989, “a censura de Ceausescu mudou o título do poema Hora Absurda para Hora Irreal”.Não foi só Pessoa que Dumitrescu descobriu através das recomendações, e traduções, de Flamand. “Gosto muito de Lobo Antunes”, diz o escultor, enquanto rebusca entre os papéis um livro enorme, com reproduções de desenhos seus, onde está um texto do romancista português, do qual vi à venda numa livraria de Bucareste a tradução de Fado Alexandrino, por Flamand juntamente com Cristina Dascalescu Dordea, que é também fadista. Dumitrescu também fala de como se sentiu inspirado por José Luís Peixoto ao ler Morreste-me. “É um livro muito forte e o título em romeno resultou muito expressivo: Mi-ai murit”, sublinha Flamand, que o traduziu em conjunto igualmente com Cristina Dascalescu Dordea. . Num recanto do ateliê, vejo uma pequena cama. Dumitrescu ri-se e diz que às vezes uma sesta ajuda ao processo criativo. Vamos agora até à oficina, noutro piso. Flamand explica-me que “a faceta mais tradicional de Dumitrescu é de gravador, no sentido em que esculpe em madeira o desenho e depois este é embebido em tinta e impresso como um negativo”. Mas cada vez mais está a dedicar-se a outra paixão, que é a de pegar em pedaços de madeira e esculpi-los para servirem de moldes para as esculturas em bronze, como a de Pessoa e do seu gato. É um processo técnico complicado, até ao resultado final, mas depois de ver antes a peça em madeira com o poeta em tamanho real e finalmente a estátua em bronze, reconheço os veios deixados pelo escopo do artista romeno.Estamos a falar sobre a vida de Dumitrescu, sobre um avô que morreu num campo de prisioneiros alemão durante a Primeira Guerra Mundial, e o pai que, depois de combater na União Soviética, em plena Segunda Guerra Mundial, ficou doente com tuberculose e voltou a casa para morrer, quando nos cruzamos no corredor com o diretor do Museu Nacional de Literatura Romena, Ioan Cristescu. Cumprimenta-nos e alerta-me para não deixar de visitar o outro edifício do museu não só pela escultura de Pessoa que lá está, mas também dezenas e milhares de peças em exposição, incluindo manuscritos e fotografias sobre os grandes escritores romenos. Tem razão: a riqueza literária da Roménia impressiona, de Eugen Ionescu, Mircea Eliade e Lucian Blaga a Mircea Cartarescu, sempre apontado como um dos favoritos ao Nobel. . Uma prensa, ferramentas, esculturas em madeira de D. Quixote ou de São Jorge a combater o dragão. Algumas já na versão final em bronze, também. E mais pinturas. Obras e mais obras de arte encostadas à parede, algumas das quais já estiveram expostas, mas o autor diz que não gosta “de se separar delas”.A oficina confirma o quão multifacetado Dumitrescu é. “Ele é escultor, desenhador, pintor”, diz Flamand. “E ator de cinema”, acrescenta o próprio Dumitrescu, em romeno, pois percebeu o que estava a ser dito em português. Fico a saber que quando era adolescente teve um papel num filme neorrealista de um realizador sérvio, que por ser estalinista teve de fugir da Jugoslávia do marechal Tito e exilar-se na Roménia. “Foi só aquela vez”, explica, entre risos, o artista. Viver da arte não era possível na Roménia de Ceausescu, fico a saber, muito menos se a criação não seguia os critérios estéticos do regime e portanto o governo não a comprava. “Sou socialista, mas nunca fui militante comunista. Integrei a juventude do partido, mas por ser obrigatório para quem quisesse ir para a universidade. Depois também fiz parte da União dos Artistas Plásticos, mas cartão do partido nunca tive”, conta. “Nu, nu”, “não, não”, reforça.Vejo Pessoa em madeira. O gato também. São esculturas e também moldes. Porquê o gato? Dumitrescu olha para Flamand, e diz para ser ele a responder. “É por causa do poema Gato que brincas na rua, diz-me o poeta que também traduz poetas. “Gato que brincas na rua/Como se fosse na cama,/Invejo a sorte que é tua/ Porque nem sorte se chama”, declama Flamand. . Está na hora, então, de ir até à rua Nicolae Cretulescu (onde iniciei este texto). Ao encontro de Pessoa e do gato, agora na versão bronze. E sim, são duas esculturas que fazem todo o sentido em Lisboa. Esculturas de um artista que aos 84 não imagina sequer parar de criar. Que diz admirar Constantin Brancusi, o grande nome da escultura romena, mas que segue outros parâmetros estéticos, muito seus, que foi aperfeiçoando. “Para mim, Brancusi é um gigante, mas não gosto que muitos tentem se proclamar brancusianos”, nota. . Finalmente, Dumitrescu apresenta-me ao seu Pessoa. Está no jardim. Parece caminhar, apressado. E se caminhasse mesmo, iria ter com outras três esculturas ali perto, na realidade uma só escultura, um conjunto de romenos de excelência à conversa: Mircea Eliade, Eugen Ionescu e Emil Cioran, na pose imortalizada numa célebre fotografia tirada em Paris, em 1977, por Louis Monier. “Na arte de Mircia, há um diálogo permanente. O visível, o concreto, e o abstrato intercambiam-se. É um diálogo permanente”, remata Flamand. Um dia destes vamos ver em Lisboa o Pessoa e o gato deste grande escultor romeno. .Bucareste celebra Enescu, o compositor “à frente do seu tempo” que pôs a Roménia no mapa da música clássica