Uma produtora que é uma cineasta alia-se a um cineasta que inventa sempre modos diferentes de fazer cinema. Filipa Reis, produtora da Uma Pedra no Sapato e realizadora de filmes como Djon África e Légua, encontra Miguel Gomes neste Grand Tour, Prémio de Melhor Realização em Cannes. São cúmplices de um projeto impossível, uma aliança entre ficção, romanesco, o real e o experimental. Já está a ser o filme português mais internacional dos últimos tempos e pode até surpreender nos Óscares - foi o escolhido pela Academia de Cinema Português para representar o nosso país. Na esplanada da Cinemateca, foram um casal de cinema para o DN. Diriam que é justo afirmar que Grand Tour é um filme que é ganho pelo seu gesto romântico? Romântico também nas suas ambições… Miguel Gomes- Há o lado romântico naquilo que o cinema tem que é cada filme produzir um espectador diferente. Que espectador sai de um filme? Diria que essa perspetiva é, para muitos, romântica, mas para mim é uma questão central: cada filme inventa um espectador. Os filmes que interessa fazer são aqueles que mudam cada um de nós… Por muito subjetivo que isso seja, o cinema deve perseguir a qualidade do espectador. .Para Grand Tour terá o espectador que o Miguel merece? MG- (risos) Queixo-me muito desta uniformização do atual cinema que infantiliza os espectadores e que quer dar às pessoas “aquilo que elas querem”. Filipa Reis- Não sendo uma espectadora isenta, devo dizer que reagi ao filme de maneira muito emocional. Quem se conseguir largar, entregar-se e aceitar a proposta vai ter um convite para a aventura.. Grand Tour é uma viagem muito emocional. MG- No Festiva de Cannes fui ouvindo que era o filme mais desafiante a concurso. Daquilo que vi acho que não houve mais nenhum filme próximo da lógica clássica do cinema de aventuras. Não é feito da mesma maneira que os filmes de Hollywood dos anos 1940 porque os tempos são outros e porque estamos em Portugal. Não sei se isso era uma vantagem, era uma característica..Para uma produtora trabalhar com o Miguel Gomes nestes dias tem também o peso da sua figura ser percecionada como uma estrela internacional, sobretudo nos festivais e pelos próprios realizadores internacionais, não tendo sido por acaso que a vencedora do Grand Prix, a indiana Payal Kapadia tenha referido o seu nome no discurso em Cannes… FR- Mas não foi por aí que cheguei ao Miguel. Essa perceção e o reconhecimento do Miguel não me atraíram, o meu interesse em trabalhar com ele passa mesmo pelo desenho e a história do filme que fez num jantar comigo numa toalha de mesa. Isso e a sua dedicação em relação à defesa do cinema, por mais ingénuo que isto possa parecer. Depois, claro, tive esse impulso de avançar: “vamos então fazer essa viagem pelo Oriente antes de se filmar”! Adiantei dinheiro, mesmo com a perceção que o projeto iria depois ser financiado - enfim, não sou só tonta. Mas desde cedo apercebi-me do impacto do Miguel quando estava à procura de apoio no Oriente. Os meus parceiros asiáticos investiram logo no começo… MG- Não sou uma estrela, estrela eu mostro-te: a Taylor Swift, que até diz para não votar Trump!.Têm receio que estejam a gerar-se mal entendidos com a entrevista do Miguel ao Expresso quando diz que tinha saudades quando filmava com pouco dinheiro? MG- Agradeço essa pergunta pois informam-me que estou a ser muito criticado nas redes sociais, coisa que não uso - creio que é algo sensato nos dias de hoje estar fora disso. Mas a verdade é que acho que o cinema português está subfinanciado, não vejam naquilo que saiu no Expresso uma sugestão para o Governo Português desinvestir no cinema. FR- Sim, há pouco dinheiro para fazer cinema em Portugal! MG- Há um problema no financiamento da indústria do cinema na Europa. Hoje em dia há de facto mais investimento em termos reais mas esse dinheiro tem um custo. Um custo que diz respeito à liberdade individual dos realizadores, ou seja, a pressão industrial interfere sobre a liberdade de cada um deles. A Europa arroga-se de ser contraponto ao capitalismo selvagem de Hollywood mas cria tantas regras como no cinema americano, mesmo que sejam regras diferentes. A questão coloca-se de forma muito decisiva para realizadores mais jovens do que eu: nem imaginam a quantidade de residências, pitchings, sessões com script doctors que têm de ser consultados para poderem ser financiados. Para mim, isso é absolutamente contraproducente. No meu tempo não era assim, mas longe de mim de estar a pedir à ministra da Cultura para estar a desinvestir no cinema. Tem é que pôr mais dinheiro..Este episódio de uma eventual nomeação para o Óscar na categoria de filme internacional como é visto pela produtora e pelo cineasta? Será assim tão vital? FR- Como produtora estou interessada e disponível a ir a jogo. Quem me dera que pelo menos o filme fosse nomeado na shortlist! Mas tenho a noção que é um filme desafiante para uma Academia americana… MG- Para mim, igual: vamos a jogo! Mas o Miguel tem paciência para esse jogo da temporada dos prémios? MG- Acho que nesta fase não é preciso grande participação minha..Não terá de aparecer, ser visto?! MG- Ninguém me disse nada! Aparecer onde!? Los Angeles? Aí ninguém me paga viagens. A equipa do nomeado Ice Merchants esteve lá semanas e foi ajudada pelo Estado… MG- Ai é!? Não sei nada disso, informem-me! Podes pôr isto na entrevista! Estive agora no TIFF de Toronto e jantei com o meu amigo Nathan Silver que fez agora o Between the Temples, obra que está a ter mais visibilidade do que o habitual. Contou-me que lhe pedem para ter uma série de reuniões esquisitas e que vá a uma série de sítios dos Golden Globes. Eu, na minha posição de realizador de filmes bizarros e que nunca estive nessas circunstâncias, disse-lhe para jogar o jogo.