Lily Gladstone em Debaixo da Ponte: revisitando uma tragédia verídica
Lily Gladstone em Debaixo da Ponte: revisitando uma tragédia verídicaDireitos reservados

Memórias e fantasmas de uma comunidade canadiana

Disponível na Disney+, Debaixo da Ponte revisita a história verídica de Reena Virk, uma jovem de ascendência indiana morta em circunstâncias de extrema violência — é um caso exemplar das chamadas produções de “True Crime”.
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Eis um sintoma da nossa pobreza cultural: qualquer ficção que encene algumas personagens femininas de forma mecânica e determinista, banalmente panfletária, reduzindo-as a símbolo pueril de “todas” as mulheres, é tratada no espaço audiovisual como um marco histórico, vazio de ideias, mas ruidoso no seu aparato… Ao mesmo tempo, muitos retratos de mulheres complexas, porventura contraditórias, genuinamente humanas, são ignorados. Daí a humilde sugestão: vale a pena descobrir Debaixo da Ponte (Disney+), mini-série criada pela actriz, produtora e realizadora Quinn Shephard que, aliás, escreveu e dirigiu dois dos oito episódios.

Ligadas por fortes laços afectivos enraizados na juventude, as duas personagens centrais de Debaixo da Ponte reencontram-se na sequência de um assassinato brutal: Cam Bentland é uma polícia canadiana, da zona de Vancouver; Rebecca Godfrey é uma escritora que regressa à cidadezinha onde cresceu para investigar o crime. Em causa estão as condições em que ocorreu a morte de Reena Virk, uma estudante de 14 anos, espancada (“debaixo da ponte”, como refere o título) por um grupo de colegas - é essa, pelo menos, a primeira dedução resultante do video de uma câmara de vigilância, desencadeando um turbilhão de especulações e suspeitas que vai abalar toda a comunidade…

Cam e Rebecca são interpretadas por duas talentosas actrizes, das mais inclassificáveis da actual produção americana, quanto mais não seja porque não “encaixam” em qualquer padrão corrente de vedeta, além do mais sabendo gerir as suas carreiras de modo a preservar a sua própria versatilidade. Cam é Lily Gladstone, nomeada para o Óscar graças à sua composição em Assassinos da Lua das Flores (2023), de Martin Scorsese; actualmente, podemos vê-la também no magnífico Fancy Dance (2023), de Erica Tremblay (Apple TV+). Na composição de Rebecca, encontramos Riley Keough (neta de Elvis Presley), cujo título de maior visibilidade pessoal terá sido American Honey (2016), de Andrea Arnold (Prémio do Júri em Cannes); surgiu como uma das figuras secundárias de Mad Max: Estrada da Fúria (2015), de George Miller, e já trabalhou várias vezes sob a direcção de Steven Soderbergh, nomeadamente na comédia policial Sorte à Logan (2017), sobre um roubo montado durante as corridas NASCAR, na Carolina do Norte.

Uma pequena comunidade

Em termos industriais, Debaixo da Ponte pertence a um registo - “True Crime” - em que, como a designação sugere, se abordam casos verídicos, sendo actualmente um conteúdo importante na maior parte das plataformas de “streaming”. Sem esquecer que, no plano literário, a longa história do género está pontuada por contributos tão significativos como A Sangue Frio (1966), de Truman Capote, ou O Canto do Carrasco (1979), de Norman Mailer.

Neste caso, justamente, é um livro de Rebecca Godfrey, a personagem interpretada por Riley Keough, que está na base do projecto: Under the Bridge (distinguido, em 2006, com o prémio de não ficção da Columbia Britânica) investiga a morte de Reena Virk, tentando compreender, em particular, como o seu fim trágico não pode ser dissociado do facto de pertencer à terceira geração de uma família de origem indiana que emigrou para o Canadá. A autora ainda colaborou com Quinn Shephard na estrutura narrativa da mini-série, vindo a falecer em 2022, vítima de cancro do pulmão, poucas semanas antes do início das filmagens - contava 54 anos.

Importa não esquecer que o contributo dos mais jovens actores de Debaixo da Ponte - com inevitável destaque para Vritika Gupta, na personagem de Reena Virk - está longe de ser indiferente para o sofisticado desenvolvimento dramático dos episódios. Eles são, afinal, os protagonistas incautos de clivagens que os afectam, mesmo (ou sobretudo) quando desconhecem as suas raízes históricas e, em particular, religiosas.

Usando uma expressão esquemática, mas sugestiva, poderemos dizer que estamos perante o retrato de uma pequena comunidade onde “não acontece nada”, subitamente confrontada com formas de violência que abalam todos os laços sociais e até familiares. Nesta perspectiva, e para lá das memórias traumáticas que acompanham a investigação de Rebecca Godfrey, a polícia interpretada por Lily Gladstone pode simbolizar a questão mais perturbante que perpassa em Debaixo da Ponte: esta é uma história em que as razões da lei e da ordem se confrontam com a irracionalidade dos seus fantasmas.

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