New Bedford vai ter estátua de Herman Melville e escolheu já o design. O escritor imortalizou a cidade em Moby-Dick?Há uma indústria turística em torno de Melville, e de Moby-Dick, em particular, em New Bedford em torno de lugares que terão inspirado momentos da narrativa, como a capela ou a estalagem. A todos se juntará essa estátua. Mas nada disso seria possível se Melville não tivesse feito daquela cidade um limiar da peregrinação de Ismael através do singular microcosmo dos baleeiros, das suas tradições, diversidade étnica, sentido trágico da existência - tão bem captado por Orson Welles no filme de John Huston através da personagem do padre Mapple -, e que o levará a mergulhar e reconhecer como sua a alteridade radical desse nobre selvagem que é Queequeg.New Bedford é uma cidade com uma numerosa comunidade portuguesa. Melville, que colocou baleeiros açorianos a bordo do Pequod na caça à mítica baleia branca, terá conhecido lá muitos portugueses ou foi sobretudo como marinheiro pelo mundo fora que contactou com portugueses?Os anos de juventude vividos no mar, onde colheu as experiências que revisitou ao longo da vida, deram-lhe a conhecer um vasto número de personagens que ele acolheu tanto nas suas narrativas como nos seus poemas: o exotismo dos bons canibais em Typee, a escrita de viagens em Omoo, a narrativa de formação em Redburn, a crítica à escravatura em Benito Cereno, a sátira ao transcendentalismo em The Confidence-Man, a tragédia do Adão americano em Billy-Budd, o melting pot universalista de Moby-Dick. Nesse sentido, John Marr, protagonista do seu penúltimo livro de poesia, John Marr e outros marinheiros, ilustra um olhar marcado por uma existência gravada no encontro com a diferença, com as singularidades que dão corpo à humanidade, que Ismael identificou em Queequeg; como ele disse, este, Queequeg, “membro nato da Primeira Igreja Congregacional”, isto é, da “antiga Igreja Católica à qual ... todos nós e todos os filhos de todas as mães e as almas de todos os viventes pertencemos”. E, no entanto, talvez tenha sido a própria literatura, de Richard Henry Dana - Two Years Before the Mast - a Camões, que mais o influenciou neste domínio.Sei que traduziu poemas de Melville. É verdade que o americano leu Os Lusíadas e tinha grande apreço por Luís de Camões?Quando há quarenta anos concluí a minha dissertação de mestrado sobre a poesia final de Melville, um amigo, Fernando Guerreiro, desafiou-me a traduzi-lo. Na altura sentia-me incapaz de o fazer. Quando décadas mais tarde um novo convite me foi endereçado nesse sentido, desta feita por Manuel Rosa, da Assírio & Alvim, eventualmente escudado por experiências análogas anteriores, propus-me fazer versões dos seus poemas em língua portuguesa. Espero não o ter atraiçoado. Respondendo diretamente à sua questão. Um grande estudioso de Melville, George Monteiro, que teve a generosidade de prefaciar um livro meu sobre literatura americana, no qual, inevitavelmente abordo a epopeia de Ismael - História(s) da Literatura Americana [Universidade Aberta], foi um pioneiro da sistematização da presença de Camões, e de Os Lusíadas, em particular, na obra de Melville. Com efeito, ele foi-lhe dado a conhecer ainda jovem, em 1844, por Jack Chase, comandante da fragata United States que Melville convocou em White-Jacket, e que tinha por hábito recitar Os Lusíadas em português aos seus camaradas. Foi ele que levou Melville à leitura da tradução desta epopeia da autoria de William Mickle.Há também referências a Vasco da Gama na poesia de Melville. Isso significa um interesse especial pelos Descobrimentos?Curiosamente, essa pergunta foi-me colocada há alguns anos por cadetes da Escola Naval aquando dum evento da Academia de Marinha quando abordei a influência de Camões em Melville. Posteriormente foi-me confirmado por colegas norte-americanos que ele continua a ser estudado em escolas navais nos Estados Unidos. Dito isto, desde as suas obras iniciais, passando obviamente por Moby-Dick, pela sua poesia final e culminando na obra seminal Billy-Budd, Melville será sempre uma presença inevitável numa obra sobre a Literatura e o Mar pela forma como, sempre ancorado nos detalhes quotidianos da vida dos marinheiros, ilumina estética e especulativamente este universo singular.New Bedford tem um extraordinário Museu da Baleia. E nele há a tradição de uma maratona de leitura de Moby-Dick em português. Açorianos, baleeiros, New Bedford, Moby Dick, tudo isto está no grande romance de Melville?De algum modo, fui já respondendo a essa questão, mas gostava de acrescentar algo: Melville acreditava que os baleeiros seus contemporâneos atualizavam a experiência épica dos navegantes portugueses de outrora; em certa medida, os baleeiros prosseguiam a epopeia dos nossos antepassados, e Moby-Dick, não negando a dimensão trágica, era, afinal, o registo literário dessa mesma epopeia.