Eis uma pergunta de algibeira: no leque de atores que podem, ou poderiam, interpretar num filme a figura de Marcello Mastroianni (1924-1996), quem conseguiria fazê-lo com a mais perfeita semelhança física? Pois bem, a resposta implica o reconhecimento de que não será um ator, mas uma atriz. A saber: a sua filha, Chiara Mastroianni. É essa a prova visual, que se confunde com uma lição de amor, do muito belo e terno Marcello Mio, de Christophe Honoré, revelado na secção competitiva de Cannes..Que se passa, então? Num tempo de alguma crise de identidade, Chiara compreende que pode “refazer” com impressionante verdade o rosto, os movimentos e a voz do seu pai… a ponto de decidir viver como Marcello! O que, bem entendido, implica o apoio ou, pelo menos, a tolerância afetiva de sua mãe, Catherine Deneuve..Enfim, importa dizer que não estamos perante uma banal imitação de telefilme, ainda menos uma caricatura. Marcello Mio é uma comédia tanto mais delicada e comovente quanto a sua narrativa de muitos ziguezagues temporais - incluindo, inevitavelmente, uma subtil evocação da cena final de La Dolce Vita (1960), de Federico Fellini - sabe integrar um pouco de tudo isso, incluindo algumas suaves derivações musicais..Além de Deneuve, Chiara vai-se cruzando com Benjamin Biolay (com quem foi casada), Fabrice Luchini, Nicole Garcia e Melvil Poupaud, numa verdadeira reunião de afetos no interior da grande família cinéfila. Se o júri presidido por Greta Gerwig quiser distinguir com o prémio de interpretação feminina alguém que possa simbolizar os valores dessa família, então Chiara Mastroianni será a escolha óbvia..Drama & burlesco.Ainda na competição, num registo bem diferente, mas também centrado numa invulgar composição feminina - Mikey Madison, que vimos em Era uma Vez Hollywood (2019), de Quentin Tarantino - surgiu Anora, de Sean Baker. Nele se faz o retrato de uma bailarina de um cabaret de strip-tease (“sex worker”, diz a terminologia americana) que se envolve com um jovem russo cuja família, riquíssima, não será o exemplo mais feliz de transparência financeira. Aquilo que começa por parecer uma anedota “romântica” sem consistência, acaba por se transfigurar num sugestivo exercício narrativo - a meio caminho entre o drama e o burlesco, eis a boa surpresa..Em Cannes