O Estado Novo nasceu de um golpe militar. Quando 48 anos depois Costa Gomes e Spínola, as duas mais altas figuras das Forças Armadas, entraram em rutura com o regime, automaticamente condenaram-no? O percurso destes dois generais é interessante: tiveram carreiras brilhantes, mas dificilmente podemos afirmar que eram “ferozes” oposicionistas. Pelo contrário, na juventude, Costa Gomes chegou a admirar Francisco Franco durante a Guerra Civil de Espanha, e Spínola, ainda cadete, participou na contenção da revolta “reviralhista” de 1931. Às vésperas do 25 de Abril, ocupavam os dois cargos mais altos na hierarquia militar: chefe e vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. O sinal de rutura surgiu em março de 1974, quando não compareceram à famosa “cerimónia da brigada do reumático”, onde os oficiais-generais reafirmavam apoio ao regime. Essa ausência deixou claro o distanciamento e, sobretudo, o desacordo com a teimosia do Governo na questão colonial. E isto não foi um gesto isolado: Costa Gomes já tinha estado envolvido na conspiração de Botelho Moniz, em 1961, e defendia há muito que a solução para a Guerra Colonial era política, não militar. Spínola, por sua vez, tinha acabado de publicar Portugal e o Futuro, com o aval de Costa Gomes, onde questionava a continuidade da guerra e a política integracionista. Portanto, ao pôr em causa a Guerra Colonial e o próprio Império, estes dois generais quebraram um dos maiores tabus do Estado Novo. E isso, sim, abriu caminho para a deslegitimação do regime.O Movimento dos Capitães muitas vezes é descrito como tendo surgido por questões corporativas. Quando se torna evidente que há uma intenção política, de defesa do prestígio das Forças Armadas, e de potencial mudança de regime? É verdade que o Movimento dos Capitães nasce, em grande medida, por questões corporativas. Os decretos de Sá Viana Rebelo, no verão de 1973, foram o detonador imediato para a mobilização que levou ao encontro de Alcáçovas, onde o movimento começou a ganhar forma. Nessa fase inicial, as motivações eram muito diversas, mas, para muitos oficiais, tratava-se sobretudo de defender direitos e carreiras. No entanto, rapidamente o movimento evolui. Um mês depois, já encontramos sinais de que a questão não era apenas corporativa. A partir de outubro de 1973, quando os decretos-lei são revogados, seria de esperar que tudo terminasse. Mas não foi isso que aconteceu e o movimento continua a crescer e começa a centrar-se na defesa do prestígio das Forças Armadas, profundamente abalado pela Guerra Colonial. A partir daí, a mobilização ganha uma dimensão política e a ideia de mudança começa a estar presente. Sem Salazar, e depois do fracasso da Primavera Marcelista, o Estado Novo estava tão desacreditado que a 25 de Abril de 1974 ninguém verdadeiramente o quis defender? Sim, sem dúvida, o regime estava muito fragilizado. Mas o fator decisivo foi a Guerra Colonial: após mais de uma década de combates em várias frentes africanas, o desgaste era enorme. O país queria mudança e, sobretudo, as Forças Armadas já não tinham vontade de defender um regime associado a uma guerra sem fim.O apoio popular à Revolução nesse dia foi sobretudo em Lisboa ou um pouco por todo o país? O epicentro das operações militares foi Lisboa, onde estava o centro do poder, por isso é natural que seja aí que o apoio popular se tornou mais visível - em locais como o Terreiro do Paço ou o Largo do Carmo. Mas não ficou restrito à capital: houve também concentrações, por exemplo, no Porto e em Coimbra. E poucos dias depois, as celebrações do 1.º de Maio confirmaram que o apoio à Revolução era nacional, mobilizando todo o país. A questão da descolonização adivinhava-se como a grande fratura no MFA? Sim, essa fratura adivinhava-se desde cedo. Não havia unanimidade sobre a solução para a Guerra Colonial, e isso ficou claro logo na fase conspirativa: alguns abandonaram o movimento quando ele assumiu uma dimensão política, colocando o fim da guerra como prioridade. Depois, debates como os da reunião de Cascais, em março de 1974, ou durante a elaboração do Programa do MFA, mostraram que nem todos defendiam a independência imediata das colónias. Derrubada a ditadura, a descolonização tornou-se o primeiro grande ponto de divisão e condicionou decisivamente os primeiros meses da Revolução. Salgueiro Maia e Otelo ficaram como ícones do 25 de Abril com todo o mérito? Foram as figuras do dia? O 25 de Abril foi uma ação coletiva e trabalhos como os desenvolvidos por Adelino Gomes e Alfredo Cunha, Os Rapazes dos Tanques, que deram rosto e voz aos que integraram a coluna de Salgueiro Maia foram fundamentais para que essa ideia não se perdesse. Além disso, note-se, apesar da importância incontestável da intervenção da coluna da Escola Prática de Cavalaria, muitos outros, antes e durante as operações do 25 de Abril, foram vitais para o seu sucesso. Centrando-nos apenas no dia 25 de Abril, pensemos na importância dos que estiveram no Posto de Comando da Pontinha (juntamente com Otelo), ou das forças militares do Porto, Tomar, Vendas Novas, Figueira da Foz, Viseu, Lamego, Mafra e Estremoz que participaram na ação. Em suma, é justo que Maia e Otelo sejam vistos como ícones, mas é preciso não perder de vista que integravam um coletivo de jovens que arriscaram as suas carreiras e as suas vidas nesse dia determinante. .A fundação, poucos dias depois do 25 de Abril, de novos partidos, sobretudo o atual PSD e o CDS, que se somaram aos já existentes, na ilegalidade, PCP e PS, mostraram a força da sociedade civil portuguesa? Deixou sobretudo patente que, depois de quase meio século de censura, partido único e ausência de liberdade, a rápida fundação de novos partidos, somando-se aos já existentes na clandestinidade, revelou vontade e espaço para um regime pluralista. Se juntarmos a isso a explosão de partidos radicais e as mobilizações sociais que marcaram os primeiros dias da Revolução (greves, ocupações, ações de protesto e reivindicação), temos um retrato mais completo da força da sociedade civil. Claro que não podemos esquecer que havia sinais prévios, como as lutas estudantis e as mobilizações sindicais, mas isso já seria tema para outra conversa. A Revolução surpreendeu o mundo? Houve em algum momento a hipótese de Portugal alterar o equilíbrio da Guerra Fria e passar do campo americano para o soviético? Sim, surpreendeu profundamente. Portugal era visto como um regime estável dentro do bloco Ocidental, aliado da NATO e dos EUA, apesar da Guerra Colonial. Além disso, o mundo foi também surpreendido pelo derrube do regime ter sido protagonizado por oficiais intermédios, e não por generais (como ocorrera, por exemplo, meses antes no Chile) e sem “derramamento de sangue”. A rapidez com que se passou de uma ditadura de quase meio século para uma democracia foi inesperada para observadores internacionais. Quanto à questão do equilibro da Guerra Fria, e ainda que o livro não se foque na dimensão internacional da Revolução, não resisti a referir, na conclusão, que “Portugal produzia mais História do que conseguia absorver, despertando receios no Ocidente em plena Guerra Fria. Temia-se que o país se tornasse um cavalo de Troia da NATO”. A radicalização do discurso revolucionário, as nacionalizações, as ocupações de terras e empresas, sem dúvida que alarmaram Washington. Portugal esteve, por um breve período, no centro das atenções do mundo e houve receios de uma viragem para o campo soviético. As eleições Constituintes de 25 de abril de 1975, com a elevada taxa de participação e os resultados favoráveis aos partidos moderados, abriram as portas para a consolidação de uma democracia de tipo Ocidental? Sim, sem dúvida e, por isso mesmo, as eleições de 25 de abril de 1975 são um marco central na história da construção da democracia portuguesa. Porquê? Desde logo porque representaram a concretização de uma promessa feita pelos capitães no próprio dia 25 de Abril de 1974, inscrita no Programa do MFA: devolver a soberania ao povo através de eleições livres. Depois, como diz, porque a elevada taxa de participação (cerca de 92%) revelou uma adesão massiva dos portugueses à mudança democrática e a consciência da importância do voto. Finalmente, dos vários motivos que poderíamos evocar, porque os resultados, favoráveis aos partidos moderados (PS, PPD, CDS), abriram caminho a uma democracia de tipo Ocidental, afastando o risco de uma deriva autoritária ou de um alinhamento exclusivo com forças revolucionárias. Estas eleições foram, portanto, um momento de legitimação popular da Revolução, deixando patente a força da legitimidade democrática e que a democracia representativa era a opção preferida pela maioria dos portugueses. O 25 de Novembro foi a data que, confirmando em termos do MFA a mesma opção política vencedora das eleições, acabou com as dúvidas sobre a democratização do país? Sim, a questão está muito bem colocada e expressa uma dimensão do 25 de Novembro, nem sempre enfatizada. Depois do sucesso eleitoral de abril de 1975, que legitimou democraticamente o processo revolucionário, o 25 de Novembro trouxe uma clarificação essencial, sobretudo no plano militar, dentro do MFA. Essa data confirmou a mesma opção política vencedora das eleições: uma democracia pluralista, afastando a hipótese de uma deriva revolucionária de tipo soviético ou cubana. Muitas das dúvidas que podiam subsistir sobre a democratização do país dissiparam-se, criando-se o terreno propício para intensas negociações entre civis e militares no pós 25 de Novembro, que culminaram nos compromissos inscritos na Constituição de 1976. Em suma, o 25 de Novembro foi o momento que criou condições para a estabilização do rumo democrático, consolidando a transição iniciada em abril de 1974. Com umas primeiras eleições livres logo em 1975 e uma Constituição amplamente votada em 1976, à qual se seguiram eleições legislativas, presidenciais e locais, Portugal foi um exemplo de transição democrática nascida de um golpe militar? Não sou muito adepta da ideia de “casos exemplares”, mas em termos de Ciência Política o caso português é, sobretudo, visto como uma transição por rutura, através de uma revolução. Ao contrário da maioria das transições protagonizadas por militares, que foram golpes para instaurar ditaduras musculadas, Portugal rompeu com esse estereótipo: um golpe militar abriu caminho à democracia. Caracteriza-se pela rapidez e voracidade dos acontecimentos: em apenas 19 meses tudo foi possível, todas as opções estiveram sobre a mesa, desde modelos socialistas radicais até soluções democráticas pluralistas. Com eleições livres logo em 1975, uma Constituição avançada e progressista em 1976 e, depois, eleições legislativas, presidenciais e locais, Portugal entrou num processo (nem sempre fácil, note-se) de consolidação de uma democracia, mas o processo foi tudo menos linear ou previsível. Entre outras coisas, tratou-se de uma consolidação com tutela militar até 1982. Em suma, Portugal não é um ‘caso exemplar’ no sentido clássico, mas é, de certa forma, um caso único: uma transição por rutura, feita por militares (oficiais intermédios), que em vez de impor uma ditadura abriu caminho à democracia..“A Revolução Portuguesa causou pânico entre os franquistas, que receavam que se propagasse a Espanha”