Luís Filipe Rocha: “O mais exaltante acontece quando um actor faz alguma coisa que eu não previ”
Numa nota de apresentação do seu novo filme deu conta de um impulso muito especial: “Li O Teu Rosto Será o Último com o fascínio e a exaltação de acreditar que foi um livro escrito para ser adaptado por mim ao cinema.” Sentiu um verdadeiro chamamento?
Senti, é verdade. Talvez por ter aprendido cinema fazendo cinema, ao longo da minha vida profissional fui também aprendendo a confiar na minha intuição – na dúvida, sigo a intuição. Alguma coisa me chamou a atenção quando li a notícia do Prémio Leya e fiquei a aguardar: o livro foi premiado em 2011, mas saiu apenas em 2012. Não vou dizer que o li numa noite, mas li-o, de facto, muito rapidamente e disse para mim próprio: tenho que contar esta história… O livro interpelou-me de uma maneira muito forte.
Em que se traduziu essa interpelação?
Tenho insistido muito na ideia de que o centro do filme é a questão do dom do Duarte – ou seja, a questão é: a arte e a vida.
Duarte é, de facto, esse menino, depois adolescente, depois jovem adulto, que vive tal questão através do seu talento para o piano. Dentro do filme, ou fora dele, parece-lhe que, quando se escolhe o dom, de alguma maneira se secundariza a vida?
Não necessariamente, mas é verdade que tem que se escolher – são dois absolutos e, interiormente, é sempre difícil compatibilizá-los. Recentemente, num texto que escrevi, fui buscar a última frase do meu filme A Passagem da Noite [2003], dita pelo João Ricardo, no papel do inspector: “Paciência, a vida é sempre mais importante que o trabalho.” Eu sempre privilegiei a vida – a vida, as pessoas, a aventura, o desconhecido. Depois, a arte exige uma parte substancial daquilo que dedicamos às pessoas que amamos, às coisa de que gostamos, à própria vida, ao acto de viver. Para receber um dom, é preciso estar preparado. E o que é estar preparado? É ter condições interiores para receber esse dom. Ora, ao longo do seu crescimento, o Duarte começa a lutar com o seu dom porque, interiormente, não está preparado para o receber.
Não está preparado, porquê? Será a conjuntura familiar, as convulsões que decorrem do 25 de Abril, uma difícil disponibilidade para os outros, incluindo a disponibilidade para o piano?
Há uma relação que está presente em, pelo menos, três filmes meus: Cerromaior [1980], Sinais de Fogo [1995] e, à sua maneira, Camarate [2001]. É aquilo que eu chamo a relação entre a História (com “H” grande) e o indivíduo (com “i” pequenino). Por muito que cada um de nós não sinta que a história do seu tempo o toca, a verdade é que toca – interfere, interpela, influencia, condiciona… Para mim, essa é uma das questões centrais na falta de preparação do Duarte, na sua relação com a história que a família está a viver: é uma história que vem do salazarismo e da Guerra Colonial, passa pelo 25 de Abril, pelos primeiros anos de liberdade… Depois de ter feito o Adeus, Pai [1996], um filme sobre a passagem da infância à adolescência, e A Passagem da Noite, precisamente sobre a “noite” da adolescência para a idade adulta (de alguma forma, Sinais de Fogo é também sobre essa passagem), surgiu-me esta possibilidade de fazer um filme sobre um menino de sete anos que, depois, passa para 13 e, por fim, surge com 20 anos – é o movimento da vida com uma criança que se vai questionando, questionando o mundo e também Schumann, Beethoven e o próprio pai.
Duarte é interpretado por três actores diferentes – a criança, o adolescente, o adulto. Através deles, sentimos não apenas a evolução do corpo, da pose, do falar, mas também essa sensação profundamente cinematográfica que é o tempo que passa.
Isso, para mim, era essencial. É fundamental encontrar maneiras de sugerir a passagem do tempo. Por isso mesmo, tive muito cuidado com os momentos em que um desaparece e aparece o seguinte – são momentos que o espectador pode aceitar, redobrando o seu interesse, precisamente porque passou tempo, mesmo que isso aconteça em poucos segundos. São também momentos em que tudo passa pela música, já que o salto no tempo corresponde também a uma diferente relação com o piano.
Ao longo dos anos, sempre sublinhou a importância do seu trabalho com os actores. Como foi esse trabalho em O Teu Rosto Será o Último?
Relembro sempre que vim do teatro, fui actor, ainda por cima no teatro universitário, na altura muito moderno e militante. Além de que descobri o cinema como actor, quando o José Fonseca e Costa me convidou para fazer um papel de algum relevo em O Recado [1972]. Passei por três fases muito distintas nesse trabalho. A primeira é a dos chamados exercícios preparatórios, em que me senti ligado a uma espécie de verdade bruta, a uma necessidade realista – por exemplo, o Cerromaior não seria possível se eu não tivesse metido quase toda a população de Portel dentro do filme. Depois, com Sinais de Vida, fui levado a lidar com um território desprovido de realismo. Até que há uma altura em que começo a ensaiar com os actores, um pouco à maneira de Sidney Lumet…
Em O Príncipe da Cidade [1981], ele seguiu mesmo um método de preparação eminentemente teatral.
Exacto. Mais recentemente, comecei a procurar, não o actor, mas o ser humano. Comecei a sentir necessidade de criar a possibilidade de o actor ser – ser, mais do que representar. Daí que eu já tenha dito várias vezes que o meu trabalho com os actores é mais como psicólogo do que como director: procuro sempre saber o que é que o actor necessita para se expressar, sabendo também que não há dois actores que precisem da mesma coisa. Aí radica grande parte do meu fascínio, porque… é a vida!
Alguma vez sentiu que esse trabalho acaba por surpreendê-lo, eventualmente surpreendendo também o próprio actor?
Sim. Aprendi muito cedo que a direcção de actores não existe num manual, é algo que se vai aprendendo, fazendo. Sempre defendi, e continuo a defender, que a direcção de actores começa na escrita do argumento – no desenho das personagens, nos diálogos, nas situações que se criam, na progressão dramática, na estrutura dramatúrgica. Até que há uma altura, talvez em A Outra Margem [2007], em que deixei de ensaiar, passando a ter uma conversa com cada actor – o que é também uma forma de nos irmos conhecendo. Carl Th. Dreyer é um dos meus grandes mestres que eu leio e releio precisamente por causa dos actores. Foi ele que disse que o trabalho do realizador com os actores é o “trabalho da parteira” – o meu trabalho é ajudar o actor a dar à luz a personagem.
Como é que tudo isso se reflecte nos resultados finais?
Hoje, não tenho qualquer dúvida que o mais exaltante na feitura de um filme acontece quando um actor faz alguma coisa que eu não previ. Sendo o mesmo válido para um director de fotografia cujo trabalho ultrapassa o que eu imaginei, ou o decorador… e por aí fora. Ou seja: o “casting” não é só uma questão de actores.
Por vezes, diz-se que algum cinema português tem dificuldade em lidar com a história do seu próprio país. Com este filme, sentiu que estava também a discutir as formas de abordagem da nossa história através dos meios cinematográficos?
Respondo relembrando os meus filmes anteriores. Creio que esse é um problema que atravessa o Cerromaior, Sinais de Fogo e, agora, O Teu Rosto Será o Último, ainda que, a meu ver, também esteja nos outros. No Cerromaior, por exemplo, questiono toda a mitologia de um Alentejo que nunca existiu. Enfim, é uma questão muito difícil de verbalizar, mas creio que há uma parte da história que liga a Guerra Colonial, o 25 de Abril e a democracia que ainda não está suficientemente exposta. Ao fazer este filme, pensei muito em tudo isso. Mas o filme não é “sobre” o 25 de Abril – é um filme sobre um menino e o seu dom, e a maneira como a história recente de Portugal vai marcando a sua vida.
Quer no livro, quer no filme, como interpreta o título O Teu Rosto Será o Último?
Pensei muito nisso… E faço uma confissão: tento sempre procurar o lado mais simples das coisas complexas. Creio que a expressão “o teu rosto será o último” tem que ver com a inevitabilidade da morte de cada um de nós. E a última coisa que vemos é o “teu rosto” – o rosto da pessoa que amamos, o rosto da pessoa que vamos deixar. Na morte de Jean Renoir, Orson Welles publicou, no Los Angeles Times, uma nota necrológica em que citava uma frase luminosa do mestre francês: “A preocupação de todo aquele que procura criar alguma coisa em cinema é o conflito entre o realismo exterior e um não-realismo interior.” Não conheço melhor nem mais clara descrição da batalha que trava quem cria cinema narrativo “realista”, procurando escapar a todas as armadilhas e confortos do naturalismo, em busca de uma “imagem real da vida humana” e não de uma pura ilustração ou cópia.
Tudo isso, ainda que marcado pela inevitabilidade da morte, não deixa de envolver uma energia vital.
Exactamente, e isso é algo que me tem acompanhado muito. Se um dia, pela dor, o sofrimento e a tristeza, deixarmos fugir a alegria de viver… No Adeus, Pai, há uma frase de Bach dita quando, depois de uma longa caminhada (naquela altura, ainda se andava muito a pé), chega a casa e fica a saber que morreram a mulher e um dos seus muitos filhos. Depois de ir ao cemitério, ao voltar a casa, no cume da tristeza, ele diz: “Deus meu, faz com que eu nunca perca a alegria que há em mim.”
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