As democracias também se medem pelas ficções que geram. No caso português, o tratamento cinematográfico da história coletiva do país no século XX (antes e depois de 1974) tem sido contaminado por estereótipos de raiz televisiva. Com variadas exceções, claro - penso nos exemplos recentes de Cartas da Guerra (Ivo Ferreira, 2016) ou O Teu Rosto Será o Último (Luís Filipe Rocha, 2024). Mas é um facto que tais estereótipos tendem a favorecer uma visão pueril, banalmente militante - como se antes ninguém estivesse vivo e, depois, só houvesse símbolos imaculados. O filme Lavagante, de Mário Barroso, luta por vencer semelhantes convenções, e fá-lo a partir de uma inspiração muito especial: a novela homónima de José Cardoso Pires (agora reeditada pela Relógio D’Água). . A estreia ocorre hoje, 2 de outubro, dia do centenário do nascimento do escritor (falecido a 26 de outubro de 1998). Assim se desenha uma linha de cumplicidades: o novo filme começou com a adaptação da novela por António-Pedro Vasconcelos (1939-2024); agora, é Mário Barroso que filma a partir do argumento que daí resultou, remetendo-nos para uma dimensão essencial da escrita de Cardoso Pires. A saber: a riqueza dramática e, mais do que isso, melodramática das personagens.Esta é uma história dos anos 60 portugueses, marcada pela repressão política, pelas lutas estudantis e também pelo pressentimento de uma clivagem cruel, porventura insuperável, cidade/campo. Mas só o é porque existe, não em nome de ideias gerais e deterministas, antes através de personagens plenas de diferenças, contrastes e contradições.É também uma história de amor, centrada na relação entre Daniel (Francisco Froes) e Cecília (Júlia Palha), com tanto de vibração carnal como de jogo de fantasmas. Simplificando, lembremos que ele esteve preso, acusado de atividades contra o regime do Estado Novo; ela surge na sua vida como uma espécie de musa, embora mantendo uma estranha proximidade com Salaviza (Diogo Infante), inspetor da polícia política. O que, enfim, desperta um misto de proteção e desespero na figura de um jornalista (Nuno Lopes)...O narrador de Cardoso Pires escreve, a certa altura: “Sei, como todos nós sabemos, como pesa o tempo vencido sobre alguém que se aventura a descrevê-lo.” De forma contida, com o seu quê de didático, o filme de Mário Barroso persegue essa sensação de peso e resistência que o tempo que passou instala numa história, no desejo de revisitar uma história.Aliás, de modo diferente da novela, o filme guarda para perto do final a explicitação da metáfora animalesca (do lavagante e do safio) que justifica o título da novela. De facto, Cardoso Pires propõe tal metáfora relativamente cedo, criando um assombramento que se abate sobre todos os gestos e situações. Dir-se-ia que, de forma diferente (mas não oposta), o filme procura preservar por mais tempo os fragmentos de um desejo romântico, mesmo que a sua possibilidade se possa esgotar numa ilusão.A preto e brancoSerá por isso que Mário Barroso, também diretor de fotografia, optou pelas imagens a preto e branco? Sem esquecer, claro, que toda a sua carreira alterna ou combina as duas funções - para nos ficarmos por um exemplo, lembremos que, entre os títulos da obra de Manoel de Oliveira em que trabalhou, se inclui O Dia do Desespero (1992), filme em que também interpreta a personagem de Camilo Castelo Branco.Uma coisa é certa: o preto e branco de Lavagante não é apenas nostálgico, nem se esgota num mero “efeito de época”. Há nas suas imagens as marcas desse “tempo vencido” a que se refere Cardoso Pires, como se algo da identidade portuguesa arrastasse uma mágoa sem fim e sem solução - Lavagante é também um filme sobre essa tristeza inapelavelmente portuguesa..'Honey Don’t!' O 'thriller' já não é o que era....'The Smashing Machine'. Com saudades de Rocky Balboa