Há muitos espectadores mais jovens que passaram a confundir Hollywood - o lugar e a mitologia - com os heróis da Marvel e as técnicas de efeitos especiais. As efemérides da cinefilia ajudam-nos a corrigir ou, pelo menos, contrariar o simplismo de tal visão. Lauren Bacall, por exemplo, símbolo cristalino da época de maior glória dos grandes estúdios da Califórnia - nasceu em Nova Iorque no dia 16 de setembro de 1924, faz hoje 100 anos..Quando convocamos este tipo de memórias, somos levados a perguntar como é que o trajeto de uma personalidade com o talento, a popularidade e a dimensão lendária de Bacall ficou inscrito na história da consagração máxima de Hollywood, isto é, os Óscares. É caso para dizer que não ficou - ou quase….Apesar de o seu nome ser indissociável da impressionante galeria de títulos clássicos que Hollywood gerou nos anos 40/50 do século passado - com obrigatório destaque para aqueles em que contracenou com o marido, Humphrey Bogart (1899-1957) -, Bacall nunca ganhou um Óscar competitivo. A única nomeação que obteve, na categoria de melhor atriz secundária, foi um acontecimento tardio na sua carreira, distinguindo a sua composição em As Duas Faces do Espelho, comédia romântica de 1996 interpretada e dirigida por Barbra Streisand..A Academia de Hollywood emendaria o seu “esquecimento” em 2009, atribuindo-lhe um Óscar honorário “em reconhecimento do seu lugar central na idade de ouro do cinema.” No discurso de agradecimento, além de Bogart, Bacall recordou alguns dos atores mais queridos com quem trabalhou, com destaque para Gregory Peck, a par de grandes realizadores que a dirigiram, incluindo Howard Hawks e John Huston - foi a filha deste, Anjelica Huston, que lhe entregou a estatueta dourada. Bacall viveu com Bogart até à morte do ator, tendo casado de novo, em 1961, com Jason Robards (divorciaram-se em 1969); teve três filhos, dois do primeiro casamento, um do segundo; viria a falecer na sua cidade natal, a 12 de agosto de 2014, portanto a poucas semanas de completar 90 anos..Bogart & Bacall.Contracenando com Bogart em Paixões em Fúria (1948)..No seu livro By Myself (distinguido em 1980 com o prémio de biografia dos National Book Awards), Bacall começa por recordar dois nomes emblemáticos do firmamento de Hollywood que, de alguma maneira, marcaram a sua adolescência: Bette Davis e Leslie Howard. Ele, o Ashley Wilkes de E Tudo o Vento Levou (1939), foi uma das suas paixões juvenis - de facto, nunca o conheceu. Quanto a Bette Davis, na altura uma das maiores estrelas de Hollywood, a par, por exemplo, de Errol Flynn, Bacall via-a como a perfeição encarnada em personagens como a figura intensamente romântica de Jezebel, a Insubmissa (William Wyler, 1938) ou a obstinada protagonista de Vitória Negra (Edmound Goulding, 1939), fumadora inveterada que tenta sobreviver a um tumor maligno no cérebro..Ironicamente, Bacall liga esta evocação ao facto de, por essa altura, a mãe a ter descoberto a fumar - afinal de contas, como ela recorda, viu os filmes de Bette Davis num lugar do balcão, a fumar um maço de cigarros (“Tinha pago o maço todo, por isso tinha que o acabar”). A mãe e um tio (os pais divorciaram-se quando ela tinha apenas 5 anos) proibiram de imediato o seu nefasto hábito, já que “as meninas bonitas de 15 anos não fumam”. Filosoficamente, Bacall conclui que o episódio familiar representou o seu “primeiro confronto com a síndrome de Sam Spade”..Em 1941, a personagem do detetive privado Sam Spade, criado pelo escritor Dashiell Hammett, seria um momento decisivo na afirmação de Humphrey Bogart como uma das grandes figuras mitológicas de todo o imaginário de Hollywood: aconteceu em The Maltese Falcon (entre nós, Relíquia Macabra), filme de John Huston que se imporia como matriz central do chamado cinema noir. Por essa altura, Bacall estudava na Academia Americana de Artes Dramáticas, ao mesmo tempo trabalhando como modelo em grandes armazéns (profissão característica das lojas de roupa da época) e, apesar de todos os seus sonhos, não imaginava que faltava pouco para se estrear no cinema contracenando com… Bogart!.Como modelo, começara a ser um rosto conhecido de publicações como a Vogue e a Harper’s Bazaar (onde surgiu numa capa de março de 1943, integrada numa campanha de recolha de sangue da Cruz Vermelha dos EUA). Até que, como nas fábulas alimentadas pela “fábrica dos sonhos”, alguém reparou nas suas imagens. Foi Nancy Keith que sugeriu ao seu marido, Howard Hawks, que fizesse um teste com Bacall. Objetivo: encontrar a atriz certa para o principal papel feminino de Ter ou Não Ter, projeto protagonizado por Bogart que Hawks estava a preparar a partir do romance de Ernest Hemingway cujo título original é, de facto, Ter e Não Ter (reeditado pelos Livros do Brasil, em 2022)..Na capa da Harper's Bazaar, em março de 1943.O jogo da representação.Ter ou Não Ter surgiu em nono lugar no top das bilheteiras americanas de 1944, transformando Bacall numa verdadeira star, ao mesmo tempo definindo Bogart/Bacall como o par do momento, cruzando o sucesso artístico com a vida privada (casaram-se em 1945). De tal modo que, em 1946, quando voltaram a filmar juntos em The Big Sleep/À Beira do Abismo, a partir do romance de Raymond Chandler, de novo sob a direção de Hawks, os cartazes colocavam os dois no mesmo plano. O encontro repetiu-se em Dark Passage/O Prisioneiro do Passado (1947), de Delmer Daves, e Key Largo/Paixões em Fúria (1948), de John Huston..No cartaz de À Beira do Abismo (1946) os dois nomes já tinham o mesmo peso.Bacall definia-se, assim, como símbolo de uma sensualidade contida que contrastava, por exemplo, com a pose de Marilyn Monroe, também ela com um início de carreira pontuado pelo olhar de Huston, em The Asphalt Jungle/Quando a Cidade Dorme (1950). Era uma imagem que ela encarava com metódico distanciamento; em 2005, na CNN, entrevistada por Larry King, diria mesmo: “Não me vejo assim, não penso dessa maneira, nunca me inseri em nenhuma categoria do género - era apenas um jogo, o jogo da representação.”.A sua filmografia foi evoluindo através de muitos contrastes, desde logo porque as suas escolhas nunca a encerraram na dramaturgia típica dos filmes noir. Pouco depois, surgiu na comédia Como se Conquista um Milionário (1953), de Jean Negulesco, ao lado de Marilyn e Betty Grable. Ou ainda em Escrito no Vento (1956), de Douglas Sirk, e A Mulher Modelo (1957), de Vincente Minnelli - o primeiro é uma proeza do romantismo ambíguo, dir-se-ia surreal, de Sirk, um dos alemães que, a par de Fritz Lang, marcaram o classicismo de Hollywood; no segundo, contracenando com o amigo Gregory Peck, assume a personagem de uma designer de moda (Designing Woman é o título original), explorando os labirintos do melodrama, género de que, para lá do musical, Minnelli foi um dos mestres absolutos..Como se Conquista um Milionário (1953), com Marilyn Monroe e Betty Grable..A partir daí, como aconteceu com muitos intérpretes da sua geração, Bacall deixou de pertencer à linha da frente de Hollywood, combinando filmes por vezes francamente inesperados com participações regulares em produções televisivas. Assim, participou em títulos como o policial Harper, Detective Privado (Jack Smight, 1966), ao lado de Paul Newman, Um Crime no Expresso do Oriente (1974), sofisticada adaptação de Agatha Christie dirigida por Sidney Lumet, ou O Atirador (1976), de Don Siegel, derradeiro filme de John Wayne..Entre os seus últimos grandes filmes encontramos duas produções de raiz europeia, ambas dominadas por Nicole Kidman: Dogville (2003), do dinamarquês Lars von Triers, e Birth - O Mistério (2004), do inglês Jonathan Glazer. De novo nos EUA, rodaria O Acompanhante (2007), subtil e perturbante conto moral de Paul Schrader, centrado na figura de um homem, interpretado por Woody Harrelson, especialista em “acompanhar” senhoras da alta sociedade de Washington..O Atirador (1976), derradeiro filme de John Wayne..Com a passagem do tempo, a afirmação de Bacall como uma atriz impossível de encerrar em qualquer “categoria” tornou-se tanto mais evidente quanto o mistério da sua presença persistiu, transcendendo as épocas e as modas. Como se, para lá das convulsões, ora ligeiras, ora dramáticas, vividas pelas suas personagens, ela permanecesse refugiada num cenário secreto, para sempre inacessível. Afinal de contas, o próprio nome, Lauren Bacall, é uma invenção cinéfila - nasceu como Betty Joan Perske