Tendo em conta o poder narrativo que os meios televisivos adquiriram, não é demais dizer que um desafio enfrentado pelo melhor cinema contemporâneo decorre da necessidade prática (também uma urgência cultural) de resistir aos clichés frequentemente gerados por esses meios. É aí que podemos situar um filme como Justa, de Teresa Villaverde, tendo como ponto de partida os efeitos trágicos dos incêndios de 2017, em Pedrógão Grande.Aliás, a expressão “ponto de partida” pode ser equívoca, já que importa não ficarmos pelo automatismo da evocação. Não se trata de “reconstituir” o que quer que seja: o que está nas imagens não é o fogo, mas sim, antes de tudo o mais, os seus efeitos devastadores na paisagem - a precisão realista da direção fotográfica de Acácio de Almeida impõe-se como elemento decisivo para a vibração dramática de todo o filme. O argumento de Justa (também assinado pela realizadora) prefere as singularidades muito concretas dos seres humanos, evitando perder-se na abstração mediática de um “tema”.Nesta perspetiva, a personagem de Mariano surge como presença nuclear no interior da pequena comunidade que o filme retrata. Isto porque o respetivo intérprete, Ricardo Vidal, é alguém que ficou marcado pelo fogo, em 2009, tinha 19 anos, num acidente de automóvel — ele próprio contou a sua história de resistência e superação no livro Viver com Alma (ed. Coolbooks, 2019). Mariano emerge, assim, como elemento fulcral da herança trágica que uma criança, de nome Justa (Madalena Cunha), enfrenta todos os dias: as memórias da sua mãe, falecida no incêndio, são apenas o primeiro sinal de um difícil processo de resistência emocional que constitui, em última instância, a matéria essencial do filme.Mesmo as personagens “institucionais” — a médica e a advogada, interpretadas, respectivamente, por Filomena Cautela e Luísa Cruz — participam desse novelo de coisas difíceis de dizer, rasgadas por perturbantes silêncios, geradas num sistema de relações cujo equilíbrio se desvaneceu. A presença de atores de outras paragens — a brasileira Betty Faria e o francês Robinson Stévenin — reforça a sensação de vulnerabilidade de todo aquele universo, como se tudo acontecesse num lugar que perdeu o seu próprio mapa simbólico.Justa é mais um filme que nos coloca perante uma fundamental questão expressiva que, como será fácil perceber, excede as coordenadas da produção portuguesa. A saber: como revalorizar as componentes de um realismo que não ceda a generalizações especulativas ou descrições pitorescas? O que está em jogo é nada mais nada menos que a verdade do fator humano..'Na Linha da Frente'. O cinema na intimidade de um hospital.'Onde Aterrar'. Comédia, romantismo e envelhecimento