Foi em finais de maio que circulou a notícia do possível ocaso da carreira de Judi Dench. Quando interrogada sobre próximos projetos, numa visita à exposição Chelsea Flower Show em Londres, a atriz britânica que completa esta segunda-feira 90 anos terá respondido que “nem consegue ver”, quanto mais ponderar um novo filme. Ficou assim iminente um ponto final relacionado com uma condição de cegueira: há mais de uma década, Dench revelou que sofria de Degenerescência Macular da Idade (DMI), uma doença que afeta a retina, mas foi sempre afirmando, pelo menos até 2022, não estar disposta a desistir. Como prova dessa atitude perseverante, recorde-se que aos 85 anos Dame Judi Dench era a mais velha estrela a fazer capa da Vogue. Disse algures que única coisa que a assusta é o tédio..Agora nonagenária, a mulher vencedora de um Óscar por oito minutos de Isabel I em A Paixão de Shakespeare (1998) – para além de outras sete nomeações ao longo de um percurso diverso –, vive no imaginário do cinema, teatro e televisão como uma autêntica atriz soberana que importa celebrar. É isso que fazemos numa escolha de nove filmes, que não incluem comédias simpáticas como O Exótico Hotel Marigold, e outras francamente dispensáveis, mas sim o “melhor vinho” das suas interpretações na relação de qualidade papel/filme..QUARTO COM VISTA SOBRE A CIDADE (1985), de James Ivory.Uma das três adaptações que James Ivory fez dos romances de E.M. Forster, A Room with a View (disponível na Filmin) é um filme de requintadas interpretações, a começar por uma então jovem e debutante Helena Bonham Carter, que, no início do século XX, descobre o amor num verão em Florença... Entre as atrizes secundárias, temos Judi Dench na pele de uma romancista vivaça com quem Maggie Smith, a prima e acompanhante da jovem inglesa, vai encontrar inspiração suficiente para questionar as bases repressoras da sua educação vitoriana, em prol de uma nova ideia de felicidade..Juntas, Dench e Smith formam uma dupla peculiar: com diálogos deliciosos, elas são o elemento cómico e perspicaz que vigia o processo de autodescoberta de Bonham Carter, enquanto a personagem de Dench incute na mulher ainda refém das convenções sociais uma visão apaixonada da vida. As duas nasceram em 1934 (Smith faria 90 anos no próximo dia 28), reencontraram-se várias vezes no grande ecrã, e há um excelente documentário de Roger Michell, Nothing Like a Dame (2018), em que se sentam para conversar divertidamente sobre a arte da representação..A RUA DO ADEUS (1987), de David Hugh Jones.Quem viu A Rua do Adeus não dirá que Judi Dench tem um papel memorável. Nesta história de uma troca de correspondência entre uma escritora americana (Anne Bancroft) e um livreiro britânico (Anthony Hopkins), ao longo de duas décadas, ela surge como a pacífica e silenciosa esposa de Hopkins, que testemunha de perto a beleza dessa amizade transatlântica baseada no amor aos livros. Parece coisa pouca, mas, através da sua magnífica quietude, Dench cria verdadeira ressonância emocional – não admira que tenha recebido a nomeação para um BAFTA como atriz secundária. Para além disso, e sendo uma personagem pouco sonante, é também curioso que Dench tenha considerado este um dos seus filmes favoritos. Encontra-se no catálogo da Netflix..SUA MAJESTADE, MRS. BROWN (1997), de John Madden.A primeira nomeação de Dench aos Óscares (Melhor Atriz) corresponde também à sua primeira vez como rainha Vitória: em Sua Majestade, Mrs. Brown, ela é uma monarca viúva, inconsolável no seu luto, que encontra inesperado conforto num servo escocês, cujo perfil destemido põe em alerta os membros da família real. John Brown, numa vigorosa composição de Billy Connolly, é então o homem que consegue amolecer a estrutura férrea de uma rainha depressiva, aos poucos preenchendo a sua vulnerabilidade com uma alegria castiça, e um raro sentido de confiança. Podia ser uma história de amor, mas estamos noutro patamar de nobreza de espírito... Em termos de protagonismo, esta foi a afirmação inaugural do poder de Judi Dench no grande ecrã..MRS. HENDERSON PRESENTS (2005), de Stephen Frears.Com Stephen Frears fez três filmes; e talvez seja este o cineasta que melhor soube explorar as cores da atriz britânica. Tudo começou com o presente drama de época, sobre Laura Henderson (1863-1944), uma excêntrica socialite que, depois de enviuvar, comprou um teatro em Londres e introduziu a nudez feminina (artística!) no repertório do espetáculo de variedades, assumindo um brilhante gesto provocador. Com a Segunda Guerra Mundial à porta, este será também um olhar cómico e agridoce sobre a relação dela com o empresário desse teatro, Vivian Van Damm (Bob Hoskins), que é simplesmente um homem à beira de um ataque de nervos perante a arrogância aventureira desta dama levada da breca. Claro que valeu outra nomeação de Óscar a Dench..DIÁRIO DE UM ESCÂNDALO (2006), de Richard Eyre.A suprema versão tóxica de Judi Dench está aqui. Amplamente tido como um dos seus melhores filmes, só o é na medida das gigantes interpretações de duas atrizes – ao lado de Dench está Cate Blanchett. Partindo do romance homónimo de Zöe Heller, este é o retrato sombrio de uma professora veterana que se sente atraída por outra colega mais jovem (Blanchett) acabada de chegar ao liceu londrino onde trabalha. E o que advém dessa atração obsessiva fica perto do monstruoso: a personagem de Dench, solitária e altamente astuciosa, descobre que a jovem professora está envolvida com um aluno adolescente e usa o “laço” do segredo (que, ainda por cima, tem adultério pelo meio) para forjar uma amizade inquietante..Eis um estudo sobre as linhas tortas do desejo e a luta de classes, moldados por uma literatura de veia highsmithiana. Dench é mesmo espetacular na sua malvadez complexa, e foi nomeada para Óscar, mais uma vez. Para quem quiser (re)ver, está disponível no Disney+..007: SKYFALL (2012), de Sam Mendes.É a derradeira presença de Dench na série de filmes James Bond (fez sete no total, embora ainda haja um flashback em Spectre) e aquela em que a sua personagem, M, tem mais tempo de ecrã, necessariamente com mais diálogos e margem para a emoção; de resto, está aqui em causa a sua liderança no MI6. Canto do cisne perfeito para aquela que se estreou na saga em 1995 (GoldenEye) como patroa de Pierce Brosnan – chamou-lhe então “dinossauro sexista e misógino, uma relíquia da Guerra Fria” –, Skyfall fecha o ciclo com a imagem de um vínculo entre os dois que se fortaleceu ao longo do tempo, neste caso, com o Bond de Daniel Craig..FILOMENA (2013), de Stephen Frears.O segundo filme de Frears com Judi Dench é o topo da colaboração realizador-atriz. A história verídica de uma mulher irlandesa à procura do filho que lhe fora levado na década de 1950 torna-se um belo conto sobre a química estabelecida entre ela e um jornalista, Martin Sixsmith (Steve Coogan, também coargumentista), que a vai ajudar na pesquisa. A química nasce então dos opostos: ao cinismo urbano dele contrapõe-se a fé e a candura dela, que não consegue olhar para o passado, ou melhor, para o convento onde foi “acolhida” como mãe solteira, enquanto realidade obscura. Entre a lágrima e o riso, este drama de Frears é de uma elasticidade tonal impressionante, permitindo a Dench criar uma personagem tão graciosa quanto profunda. Foi a sétima nomeação da atriz para os Óscares, e pode ser revisitada na Prime Video..VITÓRIA & ABDUL (2017), de Stephen Frears.Terceiro e último filme sob a direção de Frears, Vitória & Abdul veio renovar a certeza de que Dench é uma intérprete soberana. De volta ao papel de rainha Vitória, 20 anos depois de Sua Majestade, Mrs. Brown, esta obra de época funciona como uma sequela desse outro filme de John Madden, não só porque relata eventos (muito) posteriores aos de Mrs. Brown, mas sobretudo porque o faz sugerindo semelhanças entre os dois casos. A saber, aqui explora-se a amizade crepuscular entre a velha rainha e um funcionário indiano, Abdul Karim (Ali Fazal), que se tornou objeto de desconfiança alheia dada a pouco convencional relação com a monarca – Vitória escolheu-o para ser o seu “Munshi” (professor) e contador de histórias pessoal. Dench sempre prodigiosa na dinâmica da cumplicidade..BELFAST (2021), de Kenneth Branagh.Uma das mais bonitas personagens desta fase recente da carreira de Dame Dench, a avó do pequeno Buddy, em Belfast, é pura ternura num filme que celebra a fantasia das memórias de infância num cenário de violência. Vivem-se os Troubles (conflitos na Irlanda do Norte, final dos anos 1960) e a doçura dos dias vem através da primeira paixoneta ou do espanto mágico do grande ecrã; é também aí que a avó Dench se evade do mundo em redor, reagindo como uma criança aos fenómenos na tela. Com este drama de pendor autobiográfico, Branagh homenageou ainda o semblante provecto da atriz (novamente nomeada): veja-se o comoventíssimo close-up final em que ela se despede dos seus e murmura “Vão agora. Não olhem para trás”.