A escultora Feliza Bursztyn era uma figura verdadeiramente celebrada na Colômbia na sua época, há uns 50 ou 60 anos. Mas, antes da publicação deste seu livro, era conhecida dos colombianos de hoje?Não. Feliza ocupava um lugar muito importante no mundo artístico colombiano. Era, até certo ponto, uma figura mediática. Dava entrevistas e foi muito conhecida durante a sua vida. Quando morreu, tenho a impressão de que desapareceu lentamente da consciência colombiana e, quando comecei a investigar a sua vida, era uma artista de renome, mas apenas no mundo da arte. Fora do mundo da arte, ela praticamente não existia, e certamente a sua vida não existia.A trágica morte, num jantar em Paris, em 1982, também era só relembrada pela elite cultural?Só pela elite cultural que leu a coluna de García Márquez ou que se lembrava de histórias curiosas do mundo da arte. Mas para o resto dos colombianos não existia. Há uma grande escultura dela na avenida mais movimentada de Bogotá, a Carrera Séptima. Deparei-me com esta escultura todos os dias durante muito tempo. Das pessoas com quem falei que, como eu, se deparavam com esta escultura todos os dias, ninguém sabia que tinha sido feita por uma mulher chamada Feliza Bursztyn.De certa forma, este romance está a ressuscitar Feliza. Através do seu livro, muitas pessoas vão descobri-la ou redescobri-la ?Sim, e disseram-me isso. A novela voltou a colocar Feliza no centro das conversas colombianas.Está a falar de uma descoberta para, por exemplo, pessoas mais jovens da elite cultural que agora finalmente conhecem Feliza?É difícil dizer. Para este romance, conversei com professores colombianos de história da arte, especialistas na obra de Feliza Bursztyn, com 30 ou 35 anos. Portanto, há quem a conheça, mas, de um modo geral, fora do mundo da arte, Feliza caiu no esquecimento. Acredito que, dentro do mundo da arte, qualquer pessoa reconhece o seu nome, e está familiarizada com as suas obras, mas o romance colocou a sua vida no centro das conversas, o que não acontecia antes.Estamos a falar de uma filha de judeus polacos, nascida em 1933 em Bogotá. Essa Colômbia de há quase um século, de há 90 anos, 80 anos, era uma Colômbia porto de abrigo para pessoas de outras culturas, de outras nacionalidades?Não, a Colômbia nunca foi um país de imigração, como a Argentina ou o México. Era um país bastante fechado, embora com alguns episódios de imigração. Por exemplo, quando o Império Otomano desapareceu, muitos árabes cristãos chegaram à Colômbia. Mas foi uma exceção. Os pais de Feliza também são uma exceção? Judeus chegados à Colômbia quando a perseguição na Europa já se adivinhava?Entre as duas guerras mundiais, houve um fenómeno de imigração judaica para a Colômbia, muito brevemente. E durante a guerra, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Colômbia ordenou aos consulados colombianos na Europa que não admitissem mais cidadãos judeus. Portanto, isso é uma prova de que a Colômbia era um país fechado à imigração.Mas no seu livro não se fala de antissemitismo na Colômbia. Os pais de Feliza não parecem afetados por qualquer antissemitismo. Existe mesmo uma comunidade judaica bem integrada.Há uma pequena comunidade judaica que se integra muito bem, mas não está a salvo do antissemitismo. Há ao longo do tempo declarações de políticos que falam negativamente da imigração judaica. Há reações antissemitas da sociedade. Há, por exemplo, reuniões de comerciantes onde dizem que os judeus são vampiros, que nos sugam o sangue e coisas do género. Tenho outro romance, chamado Os Informantes, que trata disso em particular, da estranha situação de alguns judeus que vieram para a Colômbia fugindo de Hitler e foram perseguidos na Colômbia pelo facto de falarem alemão. Porque a Colômbia juntou-se aos Aliados na Segunda Guerra Mundial, e começou a perseguir os nazis. Havia nazis na Colômbia. Mas, e isso é uma piada cruel da história, perseguia-se todos os que falavam alemão. Nessa altura, houve mesmo uma declaração do ministro dos Negócios Estrangeiros afirmando que os judeus tinham uma abordagem parasitária da vida..A carreira artística de Feliza foi afetada em algum momento pelo antissemitismo?Não, não. A Colômbia não era um país de acolhimento, mas era um país de assimilação. Aqueles que chegavam tornavam-se imediatamente parte da comunidade. Para todos os efeitos, Feliza era colombiana. E quando começou a esculpir e a trabalhar na sua arte, no final da década de 1950, nunca teria ocorrido a ninguém dizer que não era colombiana. Era filha de estrangeiros, mas uma pessoa nascida na Colômbia, que fala com o mesmo sotaque e partilha a cultura, é imediatamente vista como colombiana.No romance há em pano de fundo turbulência política, até violência. Quando se olha para a Colômbia hoje, com o processo de paz com as FARC, com a eleição de Gustavo Petro, que muitos dizem ser o primeiro presidente de esquerda da Colômbia, o país está mais pacífico?Uma das grandes questões em todos os meus livros é a história da violência na Colômbia. A violência política tem sido uma parte ininterrupta da vida colombiana desde 1946. Esta mesma violência prevalece hoje em dia. E pergunto-me porquê. Num dos meus romances, diz-se que a Colômbia é como um rato a correr numa roda. Não conseguimos quebrar os ciclos de violência, não conseguimos acabar com o conflito que nos marcou durante 60 anos com as FARC. Defendi os acordos de paz, apesar da grande resistência que provocaram na sociedade colombiana. Sempre os defendi. Quando foram aprovados em 2016, pensei que tinham sido um grande sucesso para o país e que iríamos finalmente pôr fim ao conflito que marcou toda a minha vida.O presidente Juan Manuel Santos foi um homem corajoso ao negociar com a guerrilha. Sim, claro. Mas o governo seguinte, de direita, de Iván Duque, chegou ao poder e começou imediatamente a sabotar o acordo de paz. Não o implementou corretamente e criou obstáculos. Por isso, quando Petro chegou ao poder, apesar da desconfiança que tinha dele enquanto político, pensei: “Esta é uma boa notícia, porque um ex-guerrilheiro vai apoiar o processo de paz, defendê-lo e implementá-lo corretamente”. Não foi o caso. Petro, que é um populista e demagogo, decidiu inventar algo novo chamado paz total, que é uma negociação com criminosos, traficantes de droga e a guerrilha que resta, o ELN, e ignorou os acordos de 2016, deixou-os de lado e começou a criticá-los, dizendo que eram incompletos. Retirou o seu apoio retórico, mas também o apoio financeiro do Estado. E o resultado é o que vemos hoje, um aumento da violência, com novos grupos de guerrilha a surgir.Fala dos dissidentes das FARC? Sim, claro. Em 2019, três anos após os Acordos de Havana, o governo de Iván Duque sabotou de tal forma os acordos que criou uma situação de incerteza jurídica para os guerrilheiros desmobilizados. E um grupo desses guerrilheiros decidiu voltar a pegar em armas. São os chamados dissidentes das FARC.Neste momento há guerrilhas ativas na Colômbia?Sim. Portanto, a situação de violência no território colombiano hoje é a mesma de antes dos acordos. É um retrocesso. E a responsabilidade é, primeiro, de um presidente de direita que sabotou os acordos, e, depois, de um presidente de esquerda que os ignorou, os desconsiderou, para levar a cabo outras negociações mal planeadas, mal pensadas, altamente questionáveis do ponto de vista político, e que conduziram a uma situação de insegurança e desordem pública gravíssima.Tanto Feliza como García Márquez, tal como muitos outros colombianos, foram vítimas em algum momento desta turbulência, e viveram o exílio. García Márquez estava com Feliza no momento da morte, em Paris, e escreveu a célebre coluna, em que diz que a escultora morreu de tristeza. Havia ali amizade?Sim. Uma amizade muito profunda. Eram amigos muito próximos, parceiros muito próximos. Feliza era uma mulher muito extrovertida, tinha muitos amigos, conhecia muitas pessoas e tinha uma ligação muito forte aos mundos da arte, da literatura e da política. E estas eram três coisas que a uniam a García Márquez. García Márquez amava também o mundo da política; apreciava o contacto com pessoas poderosas, com políticos, com presidentes e assim por diante. Mas, sobretudo, conheciam-se desde muito novos, porque ambos pertenciam ao mesmo círculo, um pequeno círculo artístico e intelectual, que era o da revista Mito, que era muito importante. A Mito publicou pela primeira vez Ninguém escreve ao coronel, de García Márquez, em 1958, e era editada por um poeta, Jorge Gaitán Durán, que foi o amor de juventude de Feliza, a sua grande paixão. Conheceram-se quando nenhum dos dois era ninguém. E é isso que mais une os dois artistas: terem-se conhecido ainda antes de serem famosos.Falando dos amores de Feliza, é uma mulher que tem uma história de relações trágica, em diferentes sentidos. Trágica por causa do seu casamento muito jovem com um americano, que não resultou e levou à separação das filhas, depois também a morte de Jorge Gaitán Durán, num acidente, e depois aquele momento final de felicidade com Pablo Levya, interrompido pela sua própria morte.Sim, a vida dela é um paradoxo. E acho que essa é uma das razões pelas quais essa vida me pareceu tão cativante. Ela, como já disse, era famosa pela sua alegria, pela sua extroversão, era famosa pelo seu riso. García Márquez falava da gargalhada de Feliza, e poetas escreveram poemas sobre o seu riso.A fotografia na capa do livro mostra uma mulher atraente.A foto mostra-a muito atraente. É uma personalidade alegre, famosa pelo riso, e, ao mesmo tempo, García Márquez diz que Feliza morreu de tristeza. Para mim, a contradição era interessante.A ideia de escrever este romance nasceu dessa frase na coluna de García Márquez?A coluna intitula-se Os 166 dias de Feliza. E na primeira frase diz isto: a escultora colombiana Feliza Bursztyn, exilada em França, morreu de tristeza na passada sexta-feira num restaurante parisiense na companhia do marido e de quatro amigos.Este romance é daquelas ideias que tinha há muitos anos e que finalmente decidiu escrever?A primeira semente do romance surgiu em 1996. Tinha 23 anos, estava a escrever o meu primeiro livro, e foi simplesmente uma curiosidade. Porque podemos dizer que alguém morreu de tristeza? Mas depois estava a pensar na personagem Feliza, mas a escrever outros livros, até 2013, quando a personagem Feliza apareceu num romance meu chamado As Reputações que é a história de um cartoonista político.Aparece nesse romance como uma personagem importante? Não, não era uma personagem importante. O cartoonista político estava a desenhar uma imagem sobre Feliza, que tinha sido presa pelo exército e torturada num estábulo. Ela é mencionada apenas uma vez. Foi aí que surgiu a ideia. Foi aí que comecei a investigar a sério, falando com pessoas que a conheceram, procurando documentos, tentando saber o quanto se sabe sobre Feliza Bursztyn. Acho que naquele momento, quando ela aparece no meu romance de 2013, eu já sentia que na vida daquela personagem havia um livro. Mas demorei nove anos a confirmar, a falar com pessoas, a procurar documentos. E passados nove anos, encontrei o marido e começámos a conversar com a intenção de escrever um livro.É possível um escritor não se envolver emocionalmente ao escrever um romance que é a história de uma pessoa, e para o qual vai questionar as pessoas que a conheceram? Não, não é possível.Há um momento em que Feliza passa a fazer parte da sua vida.Da minha vida, das minhas preocupações. Há momentos em que os acontecimentos da vida da Feliza me afetam, claro. Não saí ileso deste romance. Escrevê-lo impactou-me emocionalmente. Recorde-se que, durante um ano, pedi a um homem que se lembrasse da coisa mais triste da sua vida para que eu a pudesse contar. E testemunhar isso transforma-te. Pela primeira vez, lembrou-se de coisas que lhe eram difíceis, coisas que queria esquecer. Lembrou-se de coisas dolorosas. E tudo isto para que eu as pudesse escrever. Os seus romances têm sempre uma componente política? Sou um romancista político. Os meus romances tentam sempre iluminar a intersecção entre as forças sociais - aquilo a que chamamos história, aquilo a que chamamos política - e as vidas privadas. É isso que me interessa. Interessa-me contar como os grandes eventos sociais transformam as nossas pequenas e íntimas vidas. E faço-o desde o meu primeiro romance, desde Os Informantes. Além disso, também sou colunista de um jornal. Publico um artigo de uma página no El País na edição de Madrid do jornal um domingo por mês, e na edição americana do jornal outros dois domingos por mês. Portanto, com uma parte da minha cabeça, estou sempre presente na conversa política.Muitas vezes lhe perguntam como é ser romancista no país de García Márquez. Mas não vou perguntar-lhe sobre o seu compatriota, mas sim sobre o peruano Mario Vargas Llosa, que morreu este ano. Um escritor muito político, com uma coluna nos jornais também. Quando falamos da literatura latino-americana, é cliché dizer que Vargas Llosa era o último grande?Creio que com a morte de Vargas Llosa chega ao fim uma era que mudou a literatura de língua espanhola, porque ele foi o último do Boom. O Boom, esse fenómeno que incluiu García Márquez, Vargas Llosa e Carlos Fuentes no México.O argentino Cortázar também...Cortázar também. E na década de 1960 trouxe à luz Borges, Carpentier, Asturias, Juan Carlos Onetti, todos eles. Este fenómeno foi uma das coisas mais importantes da literatura do século XX em qualquer língua. E Vargas Llosa foi o último deles. A sua morte encerra o fenómeno do Boom latino-americano que me tornou escritor. Cresci com estes romancistas. .O regresso à guerra colonial