O romance que tenha como cenário a guerra colonial portuguesa entre 1961 e 1974 (e mais alguns meses de impasse), e que envolveu mais de um milhão de militares de norte a sul de Portugal, não tem sido um tema muito frequente na nossa literatura. E se alguns escritores do pós-25 de Abril se tornaram mais célebres e lidos por abordarem esse período da nossa história social, as novas gerações não lhe pegam por alguma razão estranha. Não se passa isso com autores espanhóis, ingleses, franceses, só para apontar um canto do continente, bem como com os norte-americanos, que passaram ao papel todas as guerras do século XX em que o país participou.Afonso Reis Cabral, Prémio Leya com O Meu Irmão e Prémio Saramago com Pão de Açúcar, decidiu avançar para esse tempo da guerra colonial no seu terceiro romance, O Último Avô. Considera que não foi fácil encontrar o registo que pretendia: “Foi o meu livro mais difícil.” Explica: “Não propriamente pela voz do narrador, mas pela arquitetura, pela responsabilidade do tema, por as personagens terem nascido sem grandes referenciais. Foi um esforço de imaginação maior e acho que corri imensos riscos. Há sempre tanta coisa que pode falhar num livro.”Quanto à escolha do pano de fundo em que o romance navega, além do das relações humanas e familiares, Reis Cabral considera que voltar a pegar nesta época exige algum distanciamento. Não que seja um assunto do passado e ultrapassado, mas sim cada vez mais distante: “Mais dia, menos dia, torna-se tema de romances históricos.” Entretanto, em inúmeras famílias ainda “subsiste como memória dramática e é nessa perspetiva, a da família, que o tema pode ser renovado”. Para tal, há que evitar a escrita de experiências sem uma profundidade literária: “Nunca poderia escrever como um pastiche dos livros memorialísticos ou mesmo da literatura que se fez, quase toda tendo por base a experiência de combatente ou de quem viveu nas ex-colónias. Seria desfasado para alguém da minha geração, além de desinteressante. Sobretudo interessava-me o tema como cenário e substrato de uma história familiar.”Quando surge a frase “É um livro de memórias da guerra, não é ficção” logo se relaciona com as muitas memórias que os antigos combatentes escreveram sem pretensão. No caso de Afonso Reis Cabral, pergunta-se se esses relatos sob um olhar pessoal acrescentaram algo à investigação ou era apenas a ficção que lhe era importante e dispensava outras leituras? O autor responde: “Antes de escrever é preciso ler, ler, ler. Sobretudo num tema grande e delicado como este, com muita tradição literária. Nunca dispensaria algo que me enriquece e à minha escrita. Além do que já tinha lido, por exemplo, João de Melo, Lídia Jorge, Lobo Antunes, Manuel Alegre, Carlos Vale Ferraz, fiz um acervo também académico, dentro dos estudos de pós-memória, e muita literatura menor já bastante esquecida. Ajudou-me muito. Consultei blogues de ex-combatentes, redes sociais, enfim, de tudo um pouco.” Houve ainda outra inspiração: “A memória do meu pai, que foi capitão miliciano em Angola. As histórias que me contava na infância e o que agora ajudou a esclarecer. Sem ele, este livro não existiria. Ao mesmo tempo, ajudou ter viajado a Angola, a NDalatando, um dos cenários do livro, onde me certifiquei que estava a imaginar em condições.”Diga-se que além dos escritores que Reis Cabral cita como exemplo de um género com muita “tradição literária”, no caso da guerra portuguesa em África não será fácil acrescentar muitos mais romancistas, apenas autores que adornam os seus livros com referências à guerra colonial sem profundidade. Daí que se questione se O Último Avô pode ser a confirmação de que a guerra colonial - ou o que a ela está ligado – ainda tem fôlego para sustentar um romance. Responde porque escolheu: “Tanto acontece nos livros por acaso, melhor, por um acaso inspirado. Tive uma imagem. A de um octogenário que queima o manuscrito que escreveu às escondidas no fim da vida. Uma semana depois, morre. Não sabia quem ele era, não sabia que viria a ser o maior escritor nacional que toda a vida falou do trauma da guerra colonial, mas nunca escreveu sobre o assunto. Havia um mistério. E o que significava? Que importância tinha aquele gesto? Escrever é pôr-me obstáculos e ultrapassá-los. Lá fui indo e descobri que o que me interessava era sobretudo escrever uma história familiar que traduzisse o que tantas famílias hoje vivem. Uma fronteira dificílima entre gerações, um enorme desconhecimento e por vezes até indiferença. Os ex-combatentes são nossos pais, nossos avós, e nunca os poderemos conhecer plenamente, nunca interiorizaremos a experiência da guerra. É um tema feito de tabus e de memórias romanceadas, também feito de esquecimento e silêncios. Essa nova perspetiva é que me interessava, abordar o tema a partir do olhar de alguém da minha idade e, ao mesmo tempo, levá-la ao extremo. Por exemplo, pela sensibilidade extrema da Formiga, mãe do narrador e filha do Campelo, o tal grande escritor nacional. O passado do pai atrai-a, amedronta-a, quer conhecê-lo não querendo. Além disso, queria escrever sobre uma personagem como Campelo, alguém conflituoso, tirânico, até dúplice.”Campelo não era o herói que ele próprio propagandeava. Era importante expor essa duplicidade entre coragem e medo ao “protagonista”? O escritor corrige a perspetiva: “A duplicidade não é essa. Isso é apenas um eco da verdadeira duplicidade, a duplicidade entre verdade e mentira, ficção e realidade. E como isso pode ser um drama dentro da família, sobretudo se estamos a falar de um evento que nos marcou como país e que marca as famílias.” .O ÚLTIMO AVÔAfonso Reis CabralD.Quixote184 páginas LANÇAMENTOS A SEGUNDA GUERRA MUNDIALO biógrafo brasileiro Ruy Castro costuma “desenhar” protagonistas (Nelson Rodrigues) e quando não o faz é porque é necessário reunir um grupo para definir uma época ou um estilo (musical). Desta vez, Castro enveredou por um tema mais amplo e não tão habitual em si: a segunda guerra mundial e a sua repercussão no Rio de Janeiro. Já navegou por este registo de uma época, em Chega de Saudade, por exemplo, mas aí era sobre esta mesma cidade e o nascimento da Bossa Nova. Desta vez, reunindo um conjunto muito amplo de histórias, acontecimentos, políticas, visões enevoadas dos exércitos nos territórios em conflito em que a Força Expedicionária Brasileira foi combater. Mas não é necessário sair das suas fronteiras nem da antiga capital do Brasil para Castro reencontrar uma história e descrever uma guerra longínqua de que governantes e ideologias se aproveitaram e que pôs em confronto vários estados e criminosos de guerra que desapareceram no país para escapar ao castigo da justiça. .TRINCHEIRA TROPICALRuy CastroTinta da China404 páginas UM MILHÃO DE MULHERES SEM ROSTOConhecem-se bem os exércitos da União Soviética e os seus “feitos”, no entanto raramente se incorpora nesta história um milhão de mulheres que combateram ou exerceram tarefas militares de todo o género e a correr perigo. Alexievich decidiu iniciar os livros de investigação que a levaram ao Prémio Nobel com este há 40 anos, um documento que se mantém atual – que inclui partes novas – e que ainda exibe com mais dureza aqueles tempos do Exército Vermelho. .A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHERSvetlana AlexievichElsinore400 páginas