Se eu quisesse, enlouquecia./Sei uma quantidade de histórias terríveis./Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio…/Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso.” Foi nestes versos, que abrem um poema do livro Os Passos em Volta, que o investigador João Pedro George colheu o título da sua monumental biografia de Herberto Helder, que chega às livrarias esta quinta-feira. Ao todo, são mais de 800 páginas, que procuram desvendar o autor mais secreto da nossa Literatura (o nosso J.D Salinger, dirá o autor, em alusão ao escritor norte-americano, celebrizado pelo livro À Espera no Centeio), entre o nascimento no Funchal, em 1930, e a morte, na sua casa de Cascais, em 2015, passando por uma infância marcada pela perda da mãe, e, depois, as amizades com marginais, prostitutas, loucos e artistas malditos, os muitos casos amorosos e, finalmente, a opção pelo mergulho numa certa obscuridade, onde não entravam jornalistas, câmaras de TV, famílias literárias ou mensageiros com prémios. Um desapego que, como nos dirá João Pedro George, será mais aparente do que real…Sem voltar a cara a eventuais polémicas, George frisa que esse nunca foi o seu objetivo, mas, sim, prestar homenagem a um dos maiores nomes da nossa poesia, mostrando-o na sua face “mais humana e contraditória, como todos nós.” Uma face que ele próprio teve de reconstituir, como num trabalho de arqueologia, já que, à partida para a investigação, quando a Contraponto o desafiou, Herberto era, para ele, como para todos nós, terra incógnita. João Pedro George, sociólogo de formação, e crítico literário, é autor de uma vasta bibliografia, em que se destacam livros como O Super-Camões, O Império às Costas e Puta que os Pariu - Biografia de Luiz Pacheco.Esta biografia de Herberto Helder ocupou-lhe vários anos de trabalho. Como foi reconstituir a vida de alguém que era tão secreto e tão avesso à chamada vida pública?Trabalhei cerca de oito anos, a fazer muitas entrevistas, a fazer muito trabalho de detetive. O Herberto tinha horror a mundanidades, não dava entrevistas, detestava ser fotografado, recusava prémios, defendia muito a sua privacidade. Por outro lado, nada tem mais magnetismo do que a ideia de uma pessoa que se está a esconder e que tem segredos. Alguém que está a esconder alguma coisa exerce um fascínio enorme sobre o público. Ele fê-lo por estratégia de sedução?Inicialmente, não creio, mas depois terá percebido isso. Há um excerto dele sobre esse tema, que é muito interessante e diz assim: “O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para dececionar os que confiaram em nós. Dececionar é garantir o movimento”.Nesta pesquisa, fui obrigado a ter muita paciência por causa dessa faceta dele. Andei à caça de manuscritos, de correspondência, procurei convencer as pessoas a prestar depoimentos, o que nem sempre foi fácil. Tive, em vários casos, de lhes demonstrar que o Herberto foi uma figura pública e importante na história da cultura portuguesa e, como tal, seria inevitável que, mais tarde ou mais cedo, aparecesse uma biografia dele.Ao longo deste livro, parece haver uma figura chave que é a viúva do Herberto, Olga, ainda viva. Foi uma fonte essencial para si?A Olga e a Gisela, que é a filha. Muito poucas pessoas sabiam que o Herberto tinha uma filha, quase sempre só sabem da existência do Daniel Oliveira. Face a esse prolongado secretismo, quase à Greta Garbo, como se compreende, no final da vida, que aparecesse no Expresso, a sua fotografia, ao lado do então editor da Porto Editora, Manuel Alberto Valente?Estou convencido que ele percebeu que ia morrer antes da Olga e quis preparar o futuro dela. Ela tinha-o ajudado muito nos primeiros anos de vida em comum, a partir dos anos 70, quando era ela quem sustentava a casa. E ele estava-lhe reconhecido por isso.Partiu para este livro com alguma ideia, ou premissa, sobre o seu entrevistado?Só conhecia a poesia e, mesmo assim, não a conhecia toda. Tinha só uma imagem dele como figura enigmática, uma espécie de J.D.Salinger à portuguesa, que se escondia, o que fez com que as pessoas criassem uma aura mítica dele, quase como alguém que está para lá do material, como se fosse um arcanjo. Aparecerá talvez alguém a dizer que a imagem do Herberto sai afetada deste livro, mas não é esse o meu objetivo. Pelo contrário, é uma homenagem porque o torna mais humano. Ele vivia num mundo psicológico e intelectual muito diferente do nosso, mas, ao mesmo tempo, também era muito parecido connosco porque todos somos capazes do melhor e do pior. Vemos essa coexistência nas personagens de Dom Quixote, no Crime e Castigo, na Lolita e em grandes obras da história da literatura. Ou no cinema, como acontece no filme O Homem que Matou Liberty Valance, de John Ford. Mas estou preparado para enfrentar a polémica. A infância no Funchal foi muito marcante?Eu pergunto-me se o grande amor dele não terá sido a mãe, que morreu tão cedo. Devia ser uma mulher fascinante, que escrevia cartas a si própria, como se desdobrasse em duas. Ia pô-las ao correio e lia-as, muitas vezes em voz alta ao Herberto. Lia-lhe também literatura portuguesa em voz alta. Esse gosto pelos livros, tudo ao contrário do pai que era um burguês, sem qualquer interesse por livros, que queria que ele estudasse Direito ou Medicina, porque isso lhe traria reconhecimento social. Ora, uma das grandes tragédias de Herberto, em criança, foi não apenas a morte da mãe, como o facto das irmãs, do pai e da avó relacionarem a doença da mãe com o nascimento dele, culpando-o, afinal, pela morte dela. Isto é de uma violência tremenda.As mulheres foram muito importantes para ele?Este não é um livro sobre a poesia do Herberto, é a sua biografia. Mas a verdade é que a sua relação com as mulheres explica muita da sua poesia. E eram mulheres que iam da prostituta à mulher maternal, o que corresponde aos arquétipos neuróticos dos homens sobre o feminino. A sexualidade está muito presente na sua obra, ele encontrava um poder telúrico nas mulheres, relacionado com a maternidade, que o fascinava. Isso está muito presente no livro A Apresentação do Rosto, quando ele descobre a menstruação das irmãs, num misto de fascínio e terror. Ao longo da sua vida, ele debateu-se com um quadro clínico de depressões?Sabemos que, nos anos 60, terá feito grupo análise. Não sei se terá começado a ter um quadro de depressão na adolescência, não tenho elementos para o dizer, mas há um momento em que o padre do colégio, onde o pai o internou após a morte da mãe, pedem que o venham buscar porque o rapaz está a definhar a olhos vistos. Por outro lado, encontramos muito em livros como A Apresentação do Rosto a liberdade de associação de ideias, que pode estar relacionada com a psicanálise, como, aliás, acontecia com os poetas surrealistas.Em determinado momento do livro, refere que há, na relação de Herberto com as mulheres, uma certa mentalidade burguesa. O modo como a Olga tratava da vida dele para que pudesse escrever, sugere isso mesmo…Foi uma opção da Olga e ela assume isso sem um arrependimento. É uma mulher extraordinária, com uma personalidade fortíssima, até desconcertante. Trabalhou no departamento social da Universidade de Lisboa e, antes disso, na empresa de publicidade do Conceição Silva. Não há ninguém que possa pôr em causa o direito dela a falar e usar o seu lugar de fala. Há muitas mulheres que não teriam a coragem dela em falar da vida deles, como ela falou. Mas demorei um ano a convencê-la a falar. Em que momento o Herberto se decide por essa recusa do mediatismo? Porque houve um tempo em que não era assim - ele escrevia para jornais, ia a tertúlias, etc...Não podemos precisar, mas a experiência do divórcio da primeira mulher pode ter sido importante. A sua passagem por África, o contacto com a miséria, com a própria guerra, também coincidem, no tempo, com essa opção. Hoje em dia já não há fronteiras entre público e privado e, nesse sentido, podemos dizer que ele é o representante de uma civilização perdida.Essa mediatização do escritor começava a tomar forma nos anos 80…Há um texto do Eduardo Prado Coelho, em que se fala de jamaiquização da cultura, em alusão à famosa discoteca do Cais do Sodré, Jamaica. Nesses anos, a parte central da vida em sociedade passou a ser o entretenimento e os estilos de vida, o Bairro Alto, a Lisboa 94, a Expo 98. Ora, a cultura deve ser protegida e fomentada pelo Estado porque é uma necessidade humana básica, não passa por grandes acontecimentos de propaganda. Devo dizer, no entanto, que o desapego dele não era total. Antes pelo contrário. Movia-se nos bastidores e influenciava o que os críticos diziam sobre os livros dele e chegava a ajudar a escrever esses textos. Como assim?Consultei a correspondência com o Luís Amaro, da Colóquio-Letras, que é abundante e demonstra essa atenção. E também há várias cartas dele para o Jornal de Letras, a pedir que o deixassem em paz. Ora, alguém que se dá ao trabalho de escrever missivas a dizer isto, está, naturalmente, a chamar a atenção sobre si e a sua obra. .O século de ouro das princesas cultas.Para que não se fale dos poetas apenas quando ganham prémios ou morrem