José Cid: "Para manter a voz impecável, devo ser o cantor que mais drogas toma no mundo, mas das legais"
Mais de quatro décadas depois do aclamado 10 Mil Anos Depois Entre Vénus e Marte, o músico e cantor volta a navegar pelo vasto universo do rock progressivo, com Vozes do Além, um álbum conceptual centrado na temática da reencarnação.
"Um dia, mortos gastos, voltaremos, a viver livres como os animais. E mesmo tão cansados floriremos, irmãos vivos do mar e dos pinhais", foram estas palavras, escritas por Sophia de Mello Breyner no poema Um Dia, que espoletaram a vontade de José Cid em retomar "uma demanda poética antiga", em volta do ideal da reencarnação. "Escrevi um tema a partir daí e depois fui à procura de outros poemas com a mesma temática. Quando dei por mim tinha nascido este álbum", afirma ao DN.
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A bibliografia compilada incluía autores como Natália Correia, Aurelino Costa, Manuel Lamas, Sérgio Nascimento ou Federico Garcia Lorca (cujos textos já havia cantado em 1998, num disco de homenagem). A estes juntou-lhe alguns da sua própria autoria e ainda um outro, "muito especial", escrito pela amiga e poetisa Maria Luísa Batista, pouco tempo antes de falecer. Em comum, têm a temática, de uma suposta vida após a morte, as tais Vozes do Além que dão título ao disco. "Não se riam, porque a partir de uma certa idade todos as começamos a ouvir, quando começamos a ter necessidade de um alibi, para acreditar na existência de um outro lado, porventura melhor que este", explica.
O álbum marca também o regresso de José Cid ao rock progressivo, um universo que já desbravou há mais de 40 anos, primeiro com o Quarteto 1111 e depois a solo, no seminal 10 Mil Anos Depois Entre Vénus e Marte, em tempos considerado pela revista americana Billboard um dos cem melhores álbuns da história deste género musical. "Apesar do Grammy Latino de Excelência Musical, que recebi em 2019, ainda é como músico de rock progressivo que sou mais conhecido lá fora", lembra. E depois de ter feito uma carreira tão camaleónica, que vai do humor às baladas românticas ou da pop ao fado, assume que "este regresso ao rock progressivo é muito simbólico". E "nem é propriamente pelo gozo, porque a concentração tem de ser imensa e dá muito trabalho" tocar este tipo de música.
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"Acima de tudo gosto de música e como tal vou a todas. Só não gosto é de música mal feita e desonesta", atira. "O jazz, sim, dá-me imenso gozo. E também adoro cantar fado. Sou um artista com vários heterónimos musicais e vou a todas. Como lembrou o Samuel Úria no outro dia, até fui o primeiro a fazer um rap em Portugal, no início dos anos 80, no tema Portuguese Boys. Só não gosto de música mal feita e desonesta. Tento é sempre ser original e respeitar os momentos da inspiração, quando as musas chegam. Como já tenho uma certa idade, elas já não aparecem com tanta regularidade (risos)".
Recusa por isso qualquer comparação entre o histórico 10 Mil Anos Depois Entre Vénus e Marte e o novo Vozes do Além, que "em comum têm apenas o mesmo teclista e o cantor", ele próprio.
"Trata-se de um disco muito complexo, com uma produção fantástica do Francisco Martins, que de certa forma até se afasta do 10 Mil Anos, no sentido em que junto também um pouco de jazz e de música clássica a esse universo do rock progressivo. Só por má-fé ou desconhecimento alguém poderia afirmar isso", defende.
Os ambientes sonoros de Vozes do Além surgiram durante o primeiro confinamento, quando se trancou no seu Acid Studios, em Mogofores, onde, em parceria com o guitarrista e produtor Xico Martins, encontrou o caminho certo algures entre "uma linguagem progressiva e a liberdade jazzística". Paradoxalmente e "apesar de tudo o que de negativo aconteceu aos artistas", foi a pandemia que lhe permitiu "ter tempo para gravar como queria", com a banda que o acompanha na estrada a tocar o 10 Mil Anos, "todos músicos muito bons". Foram eles Xico Martins nas guitarras e produção, Pepe no baixo, Samuel Henriques na bateria, Kazé no violoncelo e o próprio José Cid nos teclados (piano, hammond e sintetizadores).
E foi o que se pode chamar de um álbum gravado à antiga, de forma totalmente analógica, em velhas bobines mandadas vir dos Estados Unidos. "Não entrou um único computador naquele estúdio", garante. Pelo caminho, encontrou novos colaboradores, como as bandas Ganso e Prana, que participam, respetivamente, nas faixas Porta Fechada e Homem do Além. E também chamou velhos companheiros de estrada, como Tozé Brito, com quem escreveu e interpretou a meias o tema Reencarnar é Possível. Pediu também à mulher, Gabriela Carrascalão, que refizesse um dos seus quadros, uma galeria de fantasmas de lábios cerrados e feições pálidas, aos quais a artista acrescentou uma boca, para lhes devolver a tal vida após a morte. Será esta aguarela a capa do 25,º álbum de estúdio de José Cid, cuja edição física para colecionador, "em triplo vinil deluxe, com cada disco de uma cor diferente", deverá ocorrer ainda até ao final do ano.
"Este é o álbum conclusivo da minha vida, a cereja no topo do bolo da minha carreira", considera o músico, que a 4 de fevereiro celebra o aniversário redondo de 80 anos de vida.
Muitos planos pela frente
Desengane-se, no entanto, quem julgar que isto soa a despedida, bem pelo contrário. "Ainda tenho quase 20 concertos para dar até ao fim do ano. A minha sorte é que tenho um belo otorrino. Aliás, para manter a voz impecável, devo ser o cantor que mais drogas toma no mundo, mas das legais", diz com humor. E para 2022, além dos concertos, também já tem planos: "Tenho um disco de fados, que também gravei durante o confinamento, pronto a sair e vou editar um álbum conjunto com o Tózé Brito, de quem sou uma espécie de irmão mais velho". Com edição prevista lá mais para o fim do próximo ano, incluirá as canções do Quarteto 1111 censuradas pela PIDE, bem como outros temas simbólicos do grupo, como Todo o Mundo e Ninguém, com letra do Gil Vicente e cujo sampler o rapper americano Jay Z usou na canção Mercy Me, publicada em 2017 no seu último trabalho, 4:44.
"É um álbum de certa forma provocador, mas acima de tudo de celebração de uma grande amizade, no qual o Tozé toca baixo em todas as faixas e eu teclados analógicos", revela José Cid, que olha para o atual momento da música portuguesa com bastante otimismo. "Tenho a maior admiração por quem sabe escrever, tocar e cantar a sua música. A verdade na música é fulcral e quem a tem merece todo o nosso respeito. Atualmente temos dezenas de cantores geniais, não temos é mercado suficiente para todos. Adoro as novas gerações, gente como o Úria, o Zambujo, o Miguel Araújo, o Salvador, a Deslandes ou a Joana Alegre, entre outros, que conseguem ser muito originais e ao mesmo tempo tão portugueses. O lado positivo da música portuguesa é muito maior que o negativo", sustenta.
O foco primeiro foram os concertos de apresentação de Vozes do Além no Porto e em Lisboa, a 17 e 18 de dezembro, no Hard Club e no teatro Maria Matos, respetivamente. A estreia mundial aconteceu na Anadia, a convite da autarquia local e serviu de ensaio geral para estes concertos. "Tendo em conta a complexidade do disco correu bastante bem", contou o músico, que na segunda parte do espetáculo interpretou na íntegra o álbum 10 Mil Anos Depois Entre Vénus e Marte, completando assim e também em palco, o seu percurso pelo rock progressivo, iniciado já há mais de quatro décadas.
dnot@dn.pt
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