Quando cheguei à redação do Diário de Lisboa, estagiária de 20 anos, a lenda de José Cardoso Pires ainda era evocada com um misto de veneração e humor. Estava-se em 1988 e a passagem do escritor pelo velho vespertino situado nesse Bairro Alto de todas as boémias, pertencia a um tempo de ouro do jornal, que também envolvia outros nomes grandes da Literatura e do Jornalismo como Luís Sttau Monteiro, Ernesto Sampaio, Vítor Silva Tavares, Fernando Assis Pacheco ou Pedro Alvim. Se nos lembramos que esses anos (entre 1968 e 1975) foram também os da publicação de alguns dos seus livros mais importantes, e ousados, como O Delfim ou Dinossauro Excelentíssimo, compreenderemos ainda melhor a altura a que tamanha lenda pairava acima de nós, banais escribas.José Cardoso Pires nasceu a 2 de outubro de 1925, em Vila de Rei, na Beira Baixa, por capricho materno que, segundo o filho, insistia em ter os filhos na terra natal. Aos oito dias de vida, trouxeram-no para Lisboa, para aquela que haveria de ser a capital da sua geografia íntima: o bairro de Arroios. Frequentou a escola primária do Largo do Leão, a que se seguiu o Liceu Camões, onde conheceu mestres como Rómulo de Carvalho.À saída da adolescência, José hesita entre a Matemática, licenciatura que chega a frequentar na Faculdade de Ciências de Lisboa, e a escrita, procurando tornar-se jornalista. Em 1944, tenta entrar no Diário de Lisboa, fundado e dirigido por Joaquim Manso, seu padrinho, em tempos casado com uma tia, mas este dissuade-o do intento, dizendo-lhe que o estado do jornalismo em ditadura era triste, resumindo-se a uma troca de favores.Já emancipado dos pais (vivia com uma jovem de 16 anos, que, alegava ele, lhe dissera ser maior de idade), José tem de dar um novo rumo à vida. Em 1945, sem concluir a licenciatura, alista-se na Marinha Mercante como praticante de piloto sem curso, mas é expulso em Lourenço Marques, Moçambique, após uma única viagem a bordo do navio Sofala. Mais tarde diria que, dessa viagem turbulenta, salvara-se a leitura atenta dos livros de Damon Runyan e Erskine Caldwell, o que já revelava a sua preferência pelos grandes romancistas norte-americanos, que manteria ao longo da vida.No princípios dos anos 1950, a escrita tornar-se-á a principal atividade de José. Publica o conto “Salão de Vintém” na antologia de jovens autores, Bloco, editada por Luiz Pacheco. Em livro, publicará Os Caminheiros e Outros Contos, em 1949, seguindo-se novo volume de contos, Histórias de Amor (1952) e a a novela O Anjo Ancorado (1958), com prefácio de Mário Dionísio. Também nessa década, em que casará com Edite, que conheceu no atelier de Júlio Pomar, e lhe nascerão as duas filhas, Ana e Rita, inicia a sua atividade jornalística regular na revista mensal Eva, dirigida por Carolina Homem Christo, em que será chefe de redação.Em 1959, será um dos fundadores de um título histórico da imprensa portuguesa, o mensário Almanaque. Acompanham-no, nessa “aventura” estética, nomes como Augusto Abelaira, Luís Sttau Monteiro, Sebastião Rodrigues, João Abel Manta, Alexandre O’Neill, Vasco Pulido Valente, José Cutileiro e Baptista Bastos.Mas a década de 1960 marcou, antes de mais, a sua afirmação como romancista. Depois de A Cartilha do Marialva ou das Negações Libertinas (1960), surge O Delfim, publicado em 1968 pela Moraes Editores. Obra breve, mas poderosa, faz o retrato sem contemplações de um Portugal marialva, condensado no protagonista, Tomás Manuel da Palma Bravo, que se move em círculos, fascinado pelo abismo e pela aniquilação. Em 2001, a brilhante adaptação ao Cinema por Fernando Lopes haveria de tornar O Delfim o livro mais conhecido de José Cardoso Pires.Um escritor para um horizonte vasto.O estilo muito próprio do autor estava fixado e era muito diverso do dos seus pares, já que assumia a influência dos autores anglo-americanos, à cabeça dos quais surgia Hemingway, nomeadamente na construção dos diálogos. Isto numa época em que a maior parte dos escritores e intelectuais portugueses seguia o que vinha de Paris com um zelo que se aproximava da devoção. Muitos anos depois, após a morte do escritor, Lídia Jorge lembrá-lo-à no JL (4/11/1998) como “o nosso melhor artista narrativo”. E acrescentava: “(…) O que sempre se amará na sua escrita será isso - um esforço para ser limpo, sóbrio, transparente como um vidro, cortante como o gume que nele se esconde.” Do mesmo modo, a escritora afirma que havia em Cardoso Pires uma repulsa epidérmica pelo Portugal, autopunitivo e enrolado sobre si mesmo, de Tomás de Palma Bravo: “A palavra mundo para ele era importante, porque a escrita do José era feita para um horizonte vasto (…) Tinha necessidade de não estar aqui, a sua escrita necessitava de não se confinar nem a esta língua nem a este lugar, ser daqui e não ser daqui, ser de outra parte, longínqua e aberta, ser livre (…).” No mesmo número do JL, Eduardo Lourenço evocava o que era único no escritor: “Uma das singularidades de Cardoso Pires foi a de conciliar a visão descontraída e um pouco complacente das coisas e da vida tanto como uma espontânea sedução por certa tradição satírico picaresca, com o paradigma do romance policial, apto como nenhum outro para dar corpo ao suspense.”Este humor implacável estendia-o, aliás, a si mesmo, ato de coragem (e inteligência) ainda hoje tão raro no meio literário português. Como se constata numa entrevista à jornalista Edite Soeiro (com fotos de Eduardo Gageiro) publicada na revista Eva, em 1964, onde o título é uma afirmação sua: “Andar fardado de escritor é tão ridículo como andar fardado de beatnik.”O regime salazarista vigia-o de perto, até porque, em determinado momento, chegará a militar no PCP, embora venha a deixar o partido após o 25 de Abril. Em 1963, a PIDE impede o TEUC - Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra de levar à cena a peça da sua autoria, O Render dos Heróis, ambientada no século XIX, com o movimento popular conhecido por revolta da Maria da Fonte a enfrentar a repressão exercida pelo governo de Costa Cabral. Mas as alusões ao momento político do país são mais do que evidentes. Ainda assim, em 1965, Fernando Gusmão e o Teatro Moderno de Lisboa conseguirão levar o texto ao palco da sala Estúdio do Cinema Império, em Lisboa. Interpretam, entre outros, Carmen Dolores, Rogério Paulo, Clara Joana, Rui Mendes, Ângela Ribeiro e Armando Caldas. A música é de Carlos Paredes..Em 1968, Cardoso Pires concretiza, finalmente, o seu “sonho” de juventude, ao entrar na redação do Diário de Lisboa, onde começa por dirigir o suplemento literário, publicado todas as quintas-feiras, em parceria com Vítor Silva Tavares, criando, meses mais tarde, o suplemento “A Mosca”, que ficará célebre por várias rubricas como as redações da Guidinha, assinada por Sttau Monteiro. No pós 25 de Abril, aceitaria o convite do proprietário do jornal, António Pedro Ruella Ramos, para ser diretor adjunto, cargo que assumiu entre 21 de setembro de 1974 e 31 de dezembro de 1975.A chegada da democracia permite-lhe o investimento na literatura a tempo inteiro No romance Balada da Praia dos Cães (1982), também ele adaptado ao Cinema, mas por Fonseca e Costa, evoca o crime da Praia do Guincho, no clima sufocante da ditadura, e em Alexandra Alpha (1987), obra de grande fôlego, mergulha nos conflitos políticos e culturais do pós-Revolução. Publica ainda livros de contos como Jogos de Azar, O Burro-em-Pé e A República dos Corvos e uma nova peça de teatro, Corpo-Delito na Sala de Espelhos (1980). Em 1994, reunirá em livro, de título A cavalo no Diabo, as crónicas escritas para o jornal Público.Em 1995, José Cardoso Pires sofre um AVC, que lhe afeta a fala, a escrita e a memória. Recuperará para escrever, sem pingo de auto-comiseração, o relato literário dessa experiência no seu último romance, De Profundis, Valsa Lenta, onde se pode ler: “Parei na chávena de chá e fiquei. Sinto-me mal, nunca me senti assim, murmurei numa fria tranquilidade. Silêncio brusco. Eu e a chávena debaixo dos meus olhos. De repente viro-me para a minha mulher: ‘Como é que te chamas?’. Pausa. ‘Eu? Edite.’. Nova pausa. ‘E tu?’. ‘Parece que é Cardoso Pires’, respondi então. Ainda hoje estou a ouvir aquele ‘é’. Espantoso como bruscamente o meu eu se transformou ali noutro alguém, noutro personagem menos imediato e menos concreto.” Em 2023, Fernando Vendrell adaptaria este De Profundis, Valsa Lenta, no filme Sombras Brancas, com Rui Morrison no papel de Cardoso Pires e Natália Luiza, no de sua mulher, Edite..Distinguido com o Prémio Pessoa em 1997, o escritor publicará ainda uma carta de amor à cidade que fez sua, de Arroios ao relógio que dá às horas ao contrário no British Bar, ao Cais do Sodré, na obra Lisboa, Livro de Bordo, encomendada pela Expo 98. Morrerá no Hospital de Santa Maria, às 2.30 da manhã de 26 de Outubro de 1998, depois de um novo AVC o ter mergulhado em coma profundo. Na revista Visão, Afonso Praça, que o conhecera bem no jornalismo, escreveu: “E, no outro lado onde agora está, tivesse tido a possibilidade de ler os jornais, ouvir as rádios e ver as televisões que à sua morte largamente se referiram, José Cardoso Pires estaria a estas horas mais do que zangado. Talvez não pelo relevo dado (aliás, merecido) ao ‘infausto acontecimento’ (dizer de jornalista, é claro), mas certamente pelos lugares-comuns, pelo vazio do discurso oficial, pelo ar compungido, sacrista e provinciano e também pelo abuso do adjetivo fácil.”Para a posterioridade, ficava o legado do “nosso melhor artista narrativo”, como lhe chamou Lídia Jorge, e o integrado marginal, nas palavras do seu biógrafo, Bruno Vieira Amaral (edição Contraponto, 2021). O escritor que fumava ao espelho e perguntava E agora, José? E respondia: “Então, por mais que a gente diga que não, começam a aparecer as pegadas históricas do Dinossauro que nos andou a foder a vida durante cinquenta anos. Adivinhamo-las à superfície do vidro, são manchas fósseis, gretadas, então não se vê logo?, e, escuta à distância, ouve-se o carrossel do medo.” (Do livro, E agora José)O escritor fumava ao espelho e via o país como a lagoa imaginária da Gafeira, onde tudo era propriedade do senhor da terra, a quem chamam o Infante: A casa solarenga, os campos, as pessoas, os cães, o criado negro e a sua própria mulher, Maria das Mercês. Uma noite, já muito depois da morte de Cardoso Pires, o Cinema São Jorge voltou a exibir O Delfim. Rogério Samora, que foi um Tomás da Palma Bravo, inesquecível, de prepotência marialva e fragilidade epidérmica, confidenciou-me: “Nunca fiz uma personagem que me assustasse tanto.”.Nos anos de vida e morte de José Cardoso Pires