Inventário da Solidão, o novo romance de João Tordo, escritor vencedor do Prémio Literário José Saramago (em 2009, com o romance As Três Vidas), e o Prémio Literário Fernando Namora (em 2021, com Felicidade), sucede ao policial Os Dias Contados, publicado em novembro do ano passado. O escritor está a escrever mais um policial, a sair em 2026, e está a acabar a adaptação do livro Águas Passadas para uma série televisiva que vai passar na RTP.Como é que este livro começou?Este livro tem uma história bastante estranha. Eu quis escrevê-lo em 2017. Escrevi uma primeira versão em 2017/2018, depois parei e deixei o livro na gaveta durante uns anos, porque tinha a ver com um acontecimento verdadeiro e que não me apetecia na altura abordar. Precisava de algum processamento. O livro é vagamente inspirado no tempo que eu passei em Londres em 1998, para estudar. E na altura acabei por encontrar um grupo de pessoas bastante interessantes. Como está no livro, aliás. Muitas delas são decalcadas da vida real. Aconteceu que fui mantendo contacto com essas pessoas durante uns anos, e há dez anos, uma das nossas colegas desse grupo morreu. Morreu com um cancro muito agressivo. E foi uma coisa bastante chocante. Ela tinha 40 anos. Foi uma muito perturbador para toda a gente. Ela era nova, deixou dois filhos, o marido. E pensei que seria interessante revisitar este período da vida, da transição da juventude para a vida adulta, do ponto de vista ficcional, porque a história não se passa em 1998, passa-se em 1981.E porquê esses anos, a época de Thatcher, quando houve muitos conflitos no Reino Unido?Achei que era um tempo interessante para situar a história. Enfim, eu na altura tinha seis anos, acabei por recuar uma história vagamente inspirada numa das verdades, mas não tem a ver com a minha experiência diretamente, tem a ver com a experiência de ter estado num ambiente muito particular e muito semelhante. E depois acabei por pensar que seria muito interessante contar a história daquele período, em que a Inglaterra faz uma transição muito grande para uma direita autoritária, da Thatcher, que entra em guerra com os sindicatos e com os trabalhadores das indústrias. E esses períodos da história da Inglaterra foram muito turbulentos. Sobretudo porque depois essas guerras políticas acabam sempre por desembocar em conflitos locais. E, na altura, em Brixton, que é uma área do sul de Londres, que eu conheço razoavelmente bem, houve conflitos raciais que levaram aos motins de New Cross e ao incêndio [que vitimou 13 jovens negros], de que toda a gente em Londres se lembra, foi uma coisa bastante devastadora e para o tecido social da cidade também foi muito impactante. Enfim, e não é muito diferente do que está a acontecer hoje, não é? Em vários lugares, em várias cidades e vários países. Era um cenário interessante para colocar esta personagem, este narrador, que está muito desamparado, que vai para uma realidade que ele não conhece. Eu estou sempre a contar a mesma história, só que de formas diferentes.E que história é essa?Tem a ver com essa transição entre a juventude e a idade adulta, as dificuldades dessa transição e a dor que isso também traz, as dores de crescimento, por assim dizer. Também a história universal da patologia humana, que se manifesta quando somos mais jovens, na experiência da paixão, por exemplo, que está muito retratada neste livro.E de uma forma muito direta, a paixão como sofrimento.Exatamente, está na primeira parte. O narrador, às tantas, tem um percurso peculiar. Porque ele apaixonou-se por esta rapariga quando é muito novo. E essa paixão depois traz consequências complexas. Não vale a pena revelar, porque depois vamos estragar a história, mas a consequência é real e é física. E isso é interessante do ponto de vista narrativo. De certo modo, eu também gosto de histórias em que há um acontecimento que contamina a existência. Já no livro que se chama Felicidade (2020) acontece a mesma coisa. Há um jovem casal de 17 anos que se envolve uma noite. E da primeira vez que fazem amor, ela morre. Estão em 1973 - uma altura que eu não vivi sequer - e um acontecimento contamina a vida de um jovem. Isso é muito interessante para mim, enquanto escritor. Enquanto estava a escrever este livro [Inventário da Solidão], fui buscar as coisas que eu li nesses tempos. É uma coisa que às vezes gosto de fazer, ler coisas que, no tempo desta narrativa, eu lia.Em Londres no ano de 1998.Sim. E foi lá que pela primeira vez li um livro do Graham Greene, que se chama O Fim da Aventura, The End of the Affair. Há aquela cena, que é o centro do livro, em que ela desiste do Maurice, porque faz uma promessa a Deus. Diz-lhe, se tu o salvares, eu não volto a estar com ele. E ele não entende e tem aquela conversa, só por não nos vermos não significa que o amor acabe. E é o contrário da linguagem contemporânea, que é, para existir amor, tem que haver presença, tem que haver permanência, tem que haver até existência física. E uma pessoa às vezes esquece que as pessoas andam a amar Deus há centenas ou milhares de anos e nunca o viram. Portanto, é bem possível que o verdadeiro amor seja completamente incondicional e até num certo sentido informe. Não ter forma. E essa ideia está expressa no Graham Greene e eu queria também, de certo modo, pô-la ali. Essa ideia que o narrador aprende através dessa experiência, que para ele a paixão é uma coisa destrutiva. E o amor é uma coisa inalcançável. Não há contacto entre os dois pontos. Ele começa depois a perceber o que é que pode acontecer quando se torna psicoterapeuta. Ele não se torna psicólogo por mero acaso e até diz que, se calhar, inventou uma psicologia do divino. E como lhe surgiu essa noção da psicologia do divino?Ao imaginar a relação dele com os pacientes, sobretudo com aqueles miúdos. Há um miúdo que às tantas diz que está apaixonado por uma colega, mas que ela não lhe liga nenhuma e ele responde, isso não faz mal, tu podes amar e não ser correspondido. O que é uma coisa impensável, então eu amo e não sou correspondido? Deus não nos corresponde. Não nos escreve cartas, não nos diz também gosto de ti. Isso é interessante, essa ideia da psicologia do divino. O Carl Jung expressa isso muito bem, acho que é no Memória, Sonhos, Reflexões. Ele às tantas diz que os grandes problemas da nossa vida não se resolvem, são outgrown. Nós crescemos para além deles, nós resolvemos. É o que o narrador diz ao miúdo, o que ele diz aos pacientes dele - tranquilo, que uma força qualquer maior do que tu irá encarregar-se disso. Ao nível do estilo, é uma escrita muito anglo-saxónica. Há uma economia das palavras, digamos assim. Isso é trabalhado?É, é muito trabalhado. Para mim não fazia muito sentido escrever de outra maneira. Para já, pelas minhas influências. E depois porque todos os escritores e escritoras, e até compositores - eu passo bastante tempo da semana a olhar para partituras, e as partituras, para mim, são narrativas. Têm um tema, depois esse tema oferece um território para exploração. E a narrativa mais não é do que a exploração de um território que um tema sugere. E todos os grandes escritores, escritoras e compositores de que eu gosto são criaturas que eram incapazes de pôr um tema na página que não viessem mais tarde a explicar. Isso é muito interessante do ponto de vista narrativo e é isso que eu quero fazer. É explicar ou iluminar o tema ou a ideia que eu sugeri. Leio muitos manuscritos, coisas de pessoas que querem publicar ou que às vezes mandam para concursos e eu faço parte de um júri, e muitas vezes o que eu leio é um bom tema. Por exemplo, escrevem sobre couves de Bruxelas. E ao fim de cinco páginas a pessoa já está a escrever sobre ovos mexidos e sobre salsichas. Aquilo já não é a mesma coisa. Muita da arte da narrativa, para mim, tem a ver com isso, com saber conter o território que estou a explorar. E isso faz-se com economia também. . Este romance foi um puzzle difícil de montar?Um puzzle são sempre. Até pelos tempos, porque há partes do romance que se passam em 1981, há outras que se passam em 2019. Essas duas partes são sempre complicadas de gerir. Porque há coisas que têm de bater certo. Mas para mim o mais importante é mesmo tentar explicar aquilo que eu sugeri. O que é sugerido é que a paixão é igual ao sofrimento, a paixão como doença?Esse é um tema mais geral, sim.E o tema é explicado através da história propriamente dita...Sim, depois podemos sempre argumentar que cada escritor tem a sua voz, mas isso é outra coisa. Há muitos anos, quando vivi nos Estados Unidos, tinha um professor de escrita literária que era muito interessante, muito diferente. E durante aquele semestre ele chamava-nos - os alunos, éramos doze - ao gabinete dele para falar de qualquer coisa que tivéssemos escrito durante aquele semestre, um pequeno conto, uma pequena história, ou uns quantos parágrafos, etc. E durante vários meses eu ia ter com ele ao gabinete e ele dizia-me 'isto que tu fizeste aqui lembra-me muito o Tchekhov ou vê-se que tiveste muita influência do Philip Roth, do Auster... Estava sempre a comparar-me com escritores que ele achava que me tinham influenciado. Até que no último mês desse semestre eu escrevi qualquer coisa que eu senti que era estranho e levei. E ele disse 'tudo o que tu me trouxestes até agora, eu sei o que é. Isto não sei o que é. E eu pensei que ele fosse dizer volta para aquilo que conheces. Mas não, ele disse segue esta linha. Eu próprio não percebi o que era. E esses parágrafos, eram duas ou três páginas, acabaram por ser as primeiras páginas do meu primeiro romance. Foi aí que eu percebi que o caminho era não saber. Uma pessoa percebe que passa muito tempo a imitar e a ser influenciada e a tentar reproduzir o que os outros fizeram. Depois. um dia, faz qualquer coisa que não sabe o que é. E eu continuei. Seja uma voz masculina, seja uma voz feminina, acho que nunca saí daquele sítio. Ou seja, nunca saí daquele tom, daquela voz. Apareceu ali.Em mais de 20 livros, essa voz tem evoluído com o tempo? Sou dez vezes o escritor que era quando comecei. Não estou a ser arrogante. Quando eu comecei não percebia nada do que estava a fazer. Andava perdido. Havia aquela ideia de que havia ali qualquer coisa, mas depois havia uma falta enorme de técnica, de recursos. Eu tinha que quase pausar a cada parágrafo para perceber o que é que estava a fazer, perceber para onde é que ia, de onde é que tinha vindo, como é que se metia um diálogo ali, como é que agora se começava uma cena. Escrever é uma aprendizagem que demora a vida toda. E para se começar a escrever como deve ser, demora décadas e décadas. Eu fico sempre muito espantado quando as pessoas dizem 'eu sou engenheiro bioquímico, e quero escrever um livro'. E escreve um livro. Até pode ser um bom livro, mas para se fazer isto com regularidade ao longo de muito tempo, é preciso muito trabalho e muito fracasso.Até que depois se chega a um ponto, que deve ter acontecido há seis ou sete anos, já com muitos livros e com muito trabalho, em que cheguei à página e senti que podia simplesmente estar. É uma sensação estranha de chegar à página e simplesmente sou. Já não estou a pensar como é que faço, como é que não faço, técnica, se isto fica bem aqui, se o diálogo entra aqui. E isso é uma sensação muito agradável. Claro que as coisas podem falhar. E muitas vezes falham.Já não há medo da página em branco?Não há receio de escrever. Porque eu conheço muito bem a linguagem que estou a usar. Não é a língua, a língua portuguesa é outra coisa, mas conheço muito bem a linguagem da narrativa. E como conheço muito bem, consigo estar ali à vontade para poder fazer coisas que podem resultar ou que podem não resultar.Como é que é o processo? A história já está mais ou menos construída ou aparece enquanto se escreve?Depende. Há livros que são mais exigentes no sentido de estrutura que outros. Eu não consigo partir para um policial só com uma ideia. Eu tenho que montar ali qualquer coisa, porque é mesmo muito complexo. São muitas páginas, são 600 páginas, são livros difíceis de orquestrar. E o mínimo deslize implica que eu depois tenha que reescrever. Ali tenho que ter mais estrutura. Agora, nos romances literários eu gosto muito mais de ter uma ideia e começar a desenvolver, a explorar o território que a ideia sugere, sendo cada dia um bocado uma aventura. E os policiais também são, de certa maneira. Eu nunca sei. Mas nestes, então, eu raramente sei o que vai acontecer no dia seguinte. Tenho alguns faróis à distância. É um bocado como os solos de jazz. Um pianista de jazz sabe que está em Dó menor e que vai acabar em Ré sustenido e o caminho que ele faz desta corda até àquela corda é uma invenção, improvisa. Mas ele sabe que vai chegar lá. Eu faço faço mais ou menos a mesma coisa. Posso começar em Dó maior, sei que às tantas vou chegar a Si bemol, que às tantas vou chegar a Fá. E o resto é improvisação. Mas convém perceber o que é que se está a fazer, convém saber os acordes, a harmonia. Faço esta comparação com a música porque, de facto, é muito parecido. Enquanto não se compreende a harmonia, enquanto não se compreende o ritmo, não se consegue fazer melodia. E num livro, o que é que cria a melodia?É conhecer a linguagem do que é uma narrativa. Quando se conhece a linguagem de uma narrativa, a melodia surge por si. É uma coisa estranha, comigo apareceu-me naquele dia, em 2002, em que eu estava com aquele professor, naquela sala, e de repente ele disse-me isso é qualquer coisa que eu não conheço, essa é uma melodia que eu nunca ouvi.Já o ouvir dizer que escrever é uma "seca". É menos aborrecido escrever policiais do que romances?Não, policiais são mais chatos de escrever. É chato no sentido em que trabalhar é chato. Mas é trabalho. Claro que em última análise ninguém faz o que eu faço sem ter uma dose de paixão bastante grande, de paixão por aquilo que faço. Mas enquanto estou a fazer, não é excitante.E qual é o próximo livro?É um romance policial, é a quarta aventura da Pilar Benamor. Até porque estou a acabar agora a escrita da série. Estou a escrever os guiões, a acabá-los [série que passará na RTP com base no livro Águas Passadas]. Vai começar a ser rodada em março/abril do ano que vem. E quando será lançado o novo policial ? O João escreve muito, lança quase um livro por ano...Se tudo correr bem, em 2026. Há duas coisas. Para ser um escritor profissional, ou seja, alguém que ganha a vida a escrever, eu tenho que escrever, não posso dar-me ao luxo de escrever um livro de cinco em cinco anos. É impossível. Há pessoas que podem, têm herança ou uma coisa do género, não é o meu caso. Normalmente são pessoas que têm uma vida já consolidada financeiramente. Eu não posso, portanto eu tenho que produzir com regularidade para que os meus leitores possam comprar os livros, para que eu possa ganhar dinheiro. Agora, isto parece uma coisa quase mercantilista. Mas todas as profissões e todos os ofícios têm este lado. Os pianistas da música clássica dão concertos a toda hora. Não, eu só vou tocar Brahms quando me sentir inspirado, não, tem que dar um concerto. Ou as pessoas que fazem teatro ou que fazem filmes. Na escrita parece que há uma espécie de paradigma estranho em que se o escritor escreve todos os anos, então é porque se está a vender. Eu não percebo isso. Enquanto escritor profissional o meu dever é escrever, tenho leitores para alimentar, tenho que me alimentar também. Percebo perfeitamente que as pessoas demorem sete anos a escrever um livro, eu não consigo, eu entro num livro e há uma ideia que abre aquele território incrível, eu exploro-o, ao fim de quatro, cinco meses, eu quero sair dali, não quero estar ali durante sete anos. Nunca serei capaz. Acho que aquilo precisa de uma intensidade e de uma dedicação diária, um bocado obsessiva, que para mim não faz sentido estar lá muito mais tempo. Todos os anos acabo por escrever alguma coisa porque volto a esse lugar. Ainda se quer reformar aos 67anos?Eu gostava, acho que era um bom número. Sim, acho que se escrever um livro por ano, até aos 67, saio daqui com 37 ou 38 livros, por aí. Não sei se sou capaz, mas acho que é uma ideia interessante. Faço parte da primeira geração que encara o ofício como uma coisa diária. Obviamente que tem o seu lado de inspiração, enfim, tem o seu lado de paixão por aquilo que se está a fazer, mas também tem o outro lado. Isto, para mim, é uma profissão..Jacinto Lucas Pires: "Estamos a perder palavras. Como pensamos por palavras, estamos a perder capacidades".Valter Hugo Mãe: "A verdade é muito digna. Mas eu trocaria a verdade por um verso"