Joël Dicker: "As pessoas viram-se para o policial para terem o prazer de uma história que lhes é contada"
Depois de O Enigma do Quarto 622, com Um Animal Selvagem regressa à sua Genebra natal. Era o cenário perfeito para este livro ou a cidade é mais do que um cenário, é ela própria uma personagem?
A verdade é que o livro não começou pela história, tudo começou com Genebra. Eu queria que se passasse em Genebra. Para mim Genebra é sempre o lugar mais evidente, porque é lá que vivo. Para alguns dos meus livros, a começar por A verdade sobre o Caso Harry Quebert, precisei de me distanciar da Suíça, de Genebra, para estar num mundo de ficção. Por vezes, realidade e ficção são difíceis de juntar. Portanto, Genebra foi o começo e só depois pensei “o que é que eu quero contar em Genebra?” É verdade que Genebra é uma personagem divertida, porque é uma cidade muito peculiar. É uma cidade que tem um nome maior do que ela é na realidade. Temos tendência a pôr Genebra no mesmo saco que Nova Iorque, Londres ou Paris. Mas na verdade é uma cidade pequenina.
Mas muito internacional…
Sim, muito internacional. Portanto, há o nome e há a realidade de uma cidade pequena, com as pessoas que lá moram. Os que estão na cidade e os que vivem fora da cidade mas que estão a dez minutos desta, os que estão no campo, numa aldeia. Esta topologia é muito suíça, esta geografia. Então pensei, é a história destas pessoas que vivem no campo, na natureza, mas que trabalham na cidade, duas realidades que formam um todo, que quero contar. Depois pensei, e o que é que se passou?
E começou por onde, pelo assalto [a uma joalharia, que dá início ao livro]?
Não, comecei pelas personagens. Foram as personagens que me foram surgindo e que se foram instalando. E sempre as perguntas: o que é que eles estão a fazer? O que lhes aconteceu? O que se está a passar? Porque senão, é aborrecido.
O livro não é nada aborrecido. Aliás, como já habituou os seus leitores nos livros anteriores, ao fim de cinco páginas, fica-se agarrado à história - neste caso de Arpad, Sophie, Greg e Karine. É uma técnica que desenvolveu e que repete?
Se houvesse uma técnica ou um ingrediente secreto ou uma receita que fizesse com que se conseguisse imediatamente captar a atenção do leitor, acho que todos os autores do mundo ficariam muito felizes. Todos os livreiros também! Portanto, não sei bem como é que se faz. Eu próprio quando escrevi este livro e quando o leio, acho que é um pouco lento. Será que as pessoas vão entrar nele? Tenho imensas dúvidas. E não tenho ninguém para ajudar porque os primeiros leitores são as pessoas que me são mais próximas. É complicado. Será que leram o livro na altura certa? Porque é preciso ser a altura certa, não porque alguém nos pede para ler agora. As únicas opiniões verdadeiras que temos, é quando o livro é editado. Até aí é a dúvida, é a angústia. Não é preocupação porque eu fiz como podia e como queria. Mas fico a pensar se as pessoas vão chegar ao fim do livro. E quando alguém me diz que leu o livro muito depressa fico a pensar que gostaria de saber o que terá levado a isso. E acho que é a instalação. Se há um género, uma inspiração, que reivindico é a tradição oral. Ou seja, uma história é uma partilha, é algo que passa entre um contador e uma audiência. E na tradição oral, dependem uns dos outros - o que escuta está à mercê de quem conta e o que conta precisa daquele que ouve. É assim que eu vejo um livro. É uma troca. É diferente da oralidade porque tem dois tempos - o livro é escrito no tempo 1 e é recebido num tempo 2. Mas há esta reciprocidade - eu preciso do leitor e o leitor precisa de mim. Na tradição oral, se o narrador deixar de contar, a história termina, mas se os que o ouvem se levantarem e se forem embora, também termina. É um equilíbrio que vai nos dois sentidos. Cada um deles tem uma parte do poder.
Vendeu milhões de livros, está traduzido em mais de 40 línguas, podemos dizer que o thriller é um género sem fronteiras, que funciona em todo o lado?
Funciona em todo o lado, mas sobretudo funciona neste momento. Porque as pessoas querem ler, as pessoas querem ser entretidas. A palavra “entretenimento” é muito importante e acho que tem sido um pouco maltratada. Desde sempre, desde os folhetins publicados nos jornais, que o entretenimento é algo indispensável às pessoas. Hoje o sucesso das séries de televisão mostra que o romance e a literatura falharam uma oportunidade. Mas não é tarde de mais. E o entretenimento chega através do romance. As pessoas sabem que é aí, no policial, no thriller, na ficção científica, que vão encontrar resposta para o seu desejo de serem entretidas. O grande [Jorge Luis] Borges disse “qualquer história bem contada é um policial”. E é verdade. Penso que as pessoas se viram para o policial porque têm uma espécie de garantia; a garantia de terem o prazer de uma história que lhes é contada. A literatura e o romance têm de recuperar esse papel de entretenimento.
Falámos de Genebra e da Suíça, mas A Verdade sobre o Caso Harry Quebert, O Livro de Baltimore e O Caso Alaska Sanders são todos passados nos EUA. Sei que durante muitos anos passava as férias de verão com os seus primos no Maine. Foi nessa altura que nasceu o seu interesse e fascínio pela América?
Não acho que seja um fascínio. Simplesmente, depois de ter escrito alguns livros passados na Suíça ou na Europa, perto da minha casa, percebi que queria escrever romances porque gosto de ler romances. Mas aquilo que tinha escrito até então, não correspondia de todo àquilo que eu gostava de ler. Então pensei que tinha de mergulhar mais na ficção. E pareceu-me que os EUA me permitiam estar num sítio que conhecia muito bem, mas longe de casa. E continua a ser um pouco o que preciso: preciso de contar um lugar em que a narração do local seja muito credível. Para poder pôr o que eu quiser dentro desse espaço. Contar uma história totalmente inventada. Por isso há poucos lugares onde eu consiga fazer isso - a América do Norte, a Suíça, Genebra. É preciso ir dez ou 15 vezes a um sítio para começar a conhecê-lo. Não conseguiria fazer isto num país como o Japão, onde nunca fui na vida. Não conseguiria inventar o Japão. Mesmo que leia livros ou olhe para o Google Maps, seria completamente artificial.
Sei que se levanta às 4h00 da manhã para escrever. Como é que descreveria um dia de trabalho típico, a sua rotina?
Cansativa [risos]. O processo criativo é muito empírico. É tentativa e erro. Quanto mais erro, mais avanço. Quanto mais corto, mais tiro, mais avanço. Mas demorei muito tempo a perceber isto. Quando escrevo estou 100% certo do que estou a fazer? Não. Talvez a 10%, ou menos. A probabilidade de o que eu escrevi ficar tal qual está é mínima: ou o vou apagar ou o vou trabalhar. Mas quando apago, a certeza é de 99,9%, para não dizer 100%. Logo, quanto mais tiro, mais livre avanço, melhor compreendo o que quero fazer. Isto resume a minha forma de trabalhar, que é muito lenta, mas muito prazerosa para mim.
Quando começa não sabe como vai terminar?
Não, de todo. Mas quero saber! E acho que isso se sente no livro. Não sabemos para onde vamos, mas vamos para algum lado. O leitor sabe que é uma aventura, mas que vai chegar a algum lugar no fim. E quando eu percebo o final, quando chego ali a dois terços, três quartos do livro, de repente percebo: claro! Fico entusiasmado. Um pouco como o marinheiro que avista terra e percebe que tem de ir por ali.
A certa altura neste livro, precisei de voltar atrás. Porque achava que tinha lido uma coisa que afinal não estava lá. É um efeito que procura provocar no leitor?
Muitas vezes diz-se que um bom livro é um page turner, no sentido em que convidamos o leitor a passar à página seguinte. Para mim, um bom livro é um page turner, porque primeiro viramos as páginas num sentido, mas chegado a certa altura pensamos “o quê?” e voltamos a virar no sentido contrário. É um pouco como um espetáculo de magia: sabemos que há um truque. O essencial é ficar maravilhado, mas uma pequena parte de nós acredita que vai conseguir ver o truque. Mas não. Somos apanhados.
Podia viver em qualquer lado do mundo, Paris, Londres, Nova Iorque, mas continua a viver em Genebra. É uma espécie de declaração de amor ao seu país natal ou simplesmente aconteceu?
Acho que diz muito sobre a qualidade de vida que temos na Suíça. É um país que tem os seus defeitos, mas tem muitas qualidades e, sobretudo depois da pandemia, percebemos a sorte que temos de viver num país seguro, onde o sistema de saúde é bom, onde a qualidade de vida é agradável. Porquê mudar? Pensei bastante nisso. Ir viver para aqui ou para acolá. E é verdade que há muitos países agradáveis para passar férias. Mas quando penso que se ficasse doente nesse país, apanhava um avião e voltava para a Suíça, então é melhor viver na Suíça.
Em 2020 criou a sua própria editora. Foi uma forma de poder escrever e editar o que quer, de ter essa liberdade?
O que iniciou o processo foi o encerramento da editora que me publicava até aí. O meu editor, Bernard de Fallois, de quem era muito próximo, morreu em 2018 e deixou indicações para que a sua editora fechasse. Não queria, sobretudo, que fosse comprada por um grande grupo. Era uma editora muito independente. Na altura pensei o que fazer. Com o Bernard tinha muita independência, graças ao trabalho que fazíamos juntos, sentia-me muito envolvido. Portanto, criar uma editora foi a minha forma de me manter fiel a ele.
E é importante poder dar oportunidade a jovens autores publicando os seus livros? Participa do processo de seleção?
A escolha final é minha. Ou seja, não sou eu que leio os livros e avalio, mas é a oportunidade para mim de editar e partilhar com os leitores livros que me parecem importantes.
Começou a escrever muito jovem. Aos 10 anos fundou a Gazette des Animaux, que dirigiu durante sete anos e que lhe valeu o título de “mais jovem chefe de redação da Suíça”, atribuído pelo jornal Tribune de Genève. Com uma mãe livreira e um pai professor de Francês, sempre soube que queria ser escritor?
Não está necessariamente ligado aos meus pais, apesar de terem sido eles que me incentivaram a ler. Houve sempre muitos livros lá em casa. E ler era uma coisa descomplexada. O livro não era sagrado. Podíamos lê-lo ou não ler, gostar ou não gostar, podíamos desistir de um livro se não gostássemos e ir ler outro. Não havia a obrigação de ler até ao fim. Havia entusiasmo, era agradável. Nesse sentido, os meus pais tiveram influência. Mas na escrita… no início percebi que escrevia todos os dias porque era um reflexo, uma vontade. Não era uma coisa da qual pensava fazer a minha profissão, era simplesmente algo que gostava de fazer. E quando percebi que gostava mesmo muito, pensei, “não, é um emprego complicado”, mas era uma espécie de sonho. Sabia que ia escrever sempre, mas não sabia se ia conseguir fazer disso o meu emprego.
E pensou noutras carreiras?
Sim. Sonhei ser músico. E estudei Direito.
Também quis ser bombeiro…
Bombeiro, sim, quando era pequeno. Mas o meu grande sonho era a música. De qualquer forma formei-me em Direito, tenho um mestrado em Direito. É bom fazer coisas diferentes para percebermos aquilo de que gostamos mesmo.
Foi assistente parlamentar. Ainda continua a ser?
Não.
Falou do seu sonho da música, há uns anos adquiriu uma chocolataria em Genebra com um amigo. Como é que estes interesses tão diversos se conjugam com a escrita?
Tudo o que me arrancar à escrita é bom. Pelo menos agora. Porque assistente parlamentar era um emprego. Eu sempre escrevi, mas fazia outras coisas paralelamente à escrita. Fiz os estudos e trabalhei ao mesmo tempo. Mas, depois de me formar em Direito, arranjei este trabalho como assistente parlamentar. Era um mandato de dois anos e, na Suíça, não é bem um emprego, porque os assistentes parlamentares são voluntários. São professores, polícias, jornalistas, advogados, médicos e nas horas livres são assistentes parlamentares. No meu caso era entre as 7 e as 9h00, entre o meio-dia e as 14h00 e das 18 às 23h00. Portanto, tinha o resto dos dias livre para escrever. Era uma boa oportunidade de conciliar os dois. Mas de repente, quando surgiu o sucesso, a escrita passou a ser o meu emprego. Posso passar o dia a escrever, maravilhoso! Mas, hoje em dia, o que eu acho mesmo útil são os impedimentos. Quanto mais me arrancam à escrita, mais percebo como tenho vontade de escrever. É ótimo, porque ficamos com vontade de voltar para o livro.
Essas interrupções dão-lhe inspiração?
Nem por isso. Mas posso dar-lhe um exemplo: estava a escrever no hotel há pouco quando me ligaram a dizer se podia vir para cá 15 minutos mais cedo. Estou em Portugal para isto. Digo sempre às editoras para me darem o máximo de trabalho. Não vim para fazer férias, isso faço com a minha família. Então ela liga, eu venho para cá. Fui interrompido. E ainda bem, porque a inspiração é esse algo que foi interrompido mas que fica algures no meu cérebro. É como um disco que gira. Já meteu um Mentos numa garrafa de Coca-Cola? A inspiração é isso. É o que temos dentro do cérebro. É uma garrafa de Coca-Cola - não sabemos a fórmula secreta, não sabemos do que é feita, mas é uma mistura de porcarias. Depois temos o Mentos. E a inspiração é quando o Mentos cai na garrafa de Coca-Cola e provoca uma erupção.
Estava a escrever antes de vir para aqui. Pode avançar alguma coisa sobre o seu novo projeto?
De todo! Está a avançar, mas para onde é que eu vou? É como estar na selva a cortar a vegetação com um machete para avançar. E de repente alguém nos liga e largamos a machete. Avançámos um bocado, parámos e vamos voltar, mas sem saber para onde vamos. E é ótimo! Se me esqueci do que ia escrever é porque não era bom, mas se me perseguir… é como as personagens, são boas quando ficamos a pensar o que lhes terá acontecido. Como num bom livro, mal podemos esperar para reencontrar a personagem. Quando escrevo é um pouco a mesma coisa. Há personagens que me seguem e outras que, quando volto ao livro, já me esqueci delas. Se for esse o caso, é para tirar.
Um Animal Selvagem
Joël Dicker
Alfaguara
528 páginas