O exemplo de Ronald Reagan, ator de Hollywood antes de ser presidente dos EUA, seria suficiente para reconhecermos o facto de haver uma memória histórica made in USA recheada de componentes mitológicas, memória em que cinema e política se tocam e contaminam: a quantidade de filmes sobre presidentes aí está para o confirmar. Com um exemplo - JFK (1991), de Oliver Stone - que excede a lógica biográfica mais tradicional, colocando-nos perante a dimensão traumática que tudo isso pode envolver..Aliás, JFK (disponível na Prime Video) não é um filme biográfico sobre John F. Kennedy. A sua matéria principal é o labor do procurador Jim Garrison, interpretado por Kevin Costner. Tudo começa com o assassinato do presidente, seguindo-se o longo trabalho de investigação de Garrison, procurando sustentar a tese de que Lee Harvey Oswald não agiu isoladamente, mas sim como peça de uma conspiração - é essa também, como sabemos, a perspetiva de Stone..Filme de impressionante elaboração narrativa, testando, ponto por ponto, imagem a imagem, cena a cena, o que se sabe (e o que não se sabe) sobre a morte de Kennedy, JFK encontra, tal como Garrison, a sua primeira matéria argumentativa no célebre Zapruder film. A saber: um registo dos momentos em que Kennedy é alvejado na sua limousine, ao atravessar a Dealey Plaza de Dallas no dia 22 de novembro de 1963 - tem a duração de 26,6 segundos e foi filmado, em película Kodachrome de 8mm, por um industrial do têxtil, de seu nome Abraham Zapruder..As evidências, tanto quanto os enigmas, suscitados pelo registo de Zapruder motivam uma cena de JFK, impressionante pelas suas implicações dramáticas, ainda que vivida em ambiente de peculiar serenidade. Acontece quando Garrison, na companhia do seu adjunto Lou Ivon (Jay O. Sanders), visita o espaço do armazém onde Oswald se entrincheirou para disparar contra o presidente: os dois homens têm uma arma idêntica e colocam-se na posição do atirador, apontando para a Dealey Plaza, tentando avaliar quantos tiros foram disparados e a que ritmo..Trata-se de ocupar, literalmente, o lugar do assassino. Não exatamente para o “compreender”, antes porque todos os olhares são humanos, todos integram a teia de coisas concretas e delírios abstratos de que se faz o género humano. Nesta perspectiva, JFK pode ser (e é) uma espantosa reflexão sobre a identidade americana, as suas dores, assombramentos, ilusões e desilusões; ao mesmo tempo, a sua dimensão simbólica, certamente nacional, só adquire espessura dramática e cinematográfica porque Stone trata as memórias da morte de Kennedy através de uma galeria de personagens realmente complexas, servidas por atores brilhantes: além de Kostner, integram o elenco Gary Oldman (como Oswald), Jack Lemmon, Sissy Spacek, Walter Matthau e Joe Pesci..Em 1988, convocando os factos e os seus fantasmas, Don DeLillo publicou o romance Libra, imaginando Oswald a participar numa conspiração da CIA para assassinar Kennedy. Vem a propósito citar as palavras sedutoras e inquietantes do próprio Oswald, escolhida por DeLillo para a abertura do seu livro: “A felicidade não se baseia na nossa pessoa, não é uma casinha, não é apanhar e obter coisas. A felicidade é participar no combate em que não há fronteira entre o mundo pessoal e o mundo em geral.”