Jean-Pascal Ravi. Assim nasce uma estrela

Sem medo de brincar com o tema quente do racismo, <em>Simplesmente Negro</em>, de Jean-Pascal Radi e John Wax, é uma comédia-surpresa que venceu a revelação masculina nos Césares. Assim nasce um novo comediante.
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Sem pudores nem paninhos quentes, uma comédia sobre a identidade negra francesa. Da cabeça do comediante Jean-Pascal Radi chega um manifesto curiosíssimo sobre as perceções da sociedade francesa acerca do lugar dos negros na França atual. Simplesmente Negro fala-nos de uma discussão corrente: o que é hoje o racismo e como lidar com um preconceito que gera tantos e variados equívocos. À partida, mexer nestes temas e tópicos com um olhar de escárnio não era tarefa fácil mas o gesto de provocação de Radi compensa.

E começa por compensar logo a nível de metodologia: estamos no terreno do falso-documentário, do mockumentary na primeira pessoa. Supostamente, Radi tem uma equipa atrás de si para documentar a sua "odisseia" em promover uma caminhada em Paris para dar voz ao descontentamento da comunidade negra. Radi a fazer de Radi e a mostrar o seu mundo: o filho, a mulher e os colegas de showbiz, bem como todas as reações que a sua ação provoca: há quem ache racista este protesto, há quem o queira apoiar e também quem o coloque sob os mais carregados holofotes. Pelo meio do processo, intervêm várias figuras da sociedade francesa, em especial gente do cinema e do mundo musical. Convém advertir que o comediante em questão brinca com a sua própria imagem, ele que se notabilizou por um humor de fação "realista", nomeadamente através de reportagens junto da nova geração e em diversos locais dos subúrbios parisienses. Estamos na presença de uma das atuais coqueluches da comédia francesa, quer através de participações em emissões televisivas de infotainment, um pouco como a comédia que agora Ricardo Araújo Pereira serve, quer através de argumentos e papéis em comédias lançadas nos cinemas. Zadi transformou-se numa voz de um humor político, sobretudo quando também acrescentou algumas pinceladas musicais mercê de um passado como rapper ou através de um livro intitulado Bastos à Credit.

Em Tout Simplement Noir expõe, mais do que nunca, as suas raízes africanas da Costa do Marfim, encenando uma personagem algures entre o idiota pueril e o ativista engajado. Ao mesmo tempo que está a organizar a tal marcha nas ruas de Paris vai discutindo a falta de respeito em França pela cultura negra, isto entre visitas ao pai, interação com a mulher e uma tentativa de arranjar papéis na indústria de cinema francesa. E é precisamente aí que o seu humor fica mais afiado e cruel, sobretudo quando esbarra no cliché de representar os mais variados estereótipos de "personagem negra". O pobre coitado parece não ser suficientemente agressivo quando chega à audição com Matthieu Kassovitz, que aqui autocaricatura-se como realizador vaidoso que puxa dos galões em ser o "herói" de O Ódio. Aliás, é neste mecanismo da verdade e mentira que as referências explícitas a um racismo sistémico do próprio meio cinematográfico parisiense parecem dar ao filme mais força. Existem momentos francamente hilariantes em que a sátira às próprias perceções dos lugares-comuns produzem uma reflexão mais séria do que se poderia inicialmente supor. É com a piada de tom confessional que Zadi explora essa ideia de cinema ativista e legitima o verdadeiro desfile de estrelas francesas a fazerem de si próprias, com particular destaque para as versões satirizadas que Omar Sy e Joey Starr oferecem. Nesse registo, o filme consegue dizer a brincar coisas muitíssimo sérias, mesmo quando, por vezes, corre o risco de convocar a piada interna, sobretudo para um público mais desconhecedor do atual star system francês.

Outro dos trunfos desta caça aos clichés das perceções do racismo quotidiano é propor uma discussão das próprias portas destas feridas. O que é isso do comportamento discriminatório? Até que ponto essas brigadas de acusações racistas são insufladas? São perguntas que Zadi deixa no ar com esta sua realização em mise en abyme, em que todos fazem de si próprios e refletem sobre a sua má consciência burguesa e de como pode ser fácil ser racista ou politicamente correto. Por muito que tudo pareça ser solto e improvisado, percebe-se que a escrita do filme é firme e sem desvios numa militância capaz de dissecar as falsas introspeções identitárias e as vitimizações das minorias. Tudo isto pensado e executado antes dos casos George Floyd e Adama Traoré.

Estreado em França quando os cinemas ainda tinham licença para multidões no ano passado, chega agora à Netflix depois de Zadi receber o prémio de melhor revelação masculina nos Césares, os prémios da Academia francesa.

Um sinal de que a partir de agora a indústria que ele maltratou conta com ele para ser uma alternativa ao humor mais institucional de Omar Sy. Depois de vermos o filme percebemos que seria de muito mau tom olharmos para ele como uma espécie de Eddie Murphy francês. Não, Zadi está mais perto de um humor social da escala sistémica de Sacha Baron Cohen. Um humor que combate corrosivamente a hipocrisia social. Com a sua dentadura saliente e um humor físico delirante, Zadi é, antes do mais, um humorista nato. Um tipo naturalmente divertido.

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