O mercado cinematográfico continua a sofrer os golpes de um marketing que, se não ignora, menospreza os valores da história do cinema - exemplo cruel deste final de ano é o lançamento da mais recente realização de Clint Eastwood (Juror #2) diretamente no caldeirão das plataformas de streaming, sem ter passado pelas salas. Daí o inestimável valor que importa reconhecer no trabalho de alguns distribuidores e exibidores independentes que, ao longo de 2024, de Ingmar Bergman a Coppola (o pai Francis e a filha Sofia), não desistiram de celebrar as mais puras memórias cinéfilas. O ano encerra com o arranque de um grande acontecimento da mesma área: um ciclo quase integral de Jacques Demy (1931-1990), em cópias restauradas, incluindo alguns títulos comercialmente inéditos, entre os quais quatro curtas-metragens..Há uma motivação próxima para enquadrar o ciclo: este é, de facto, o ano do 60.º aniversário de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1964, recentemente restaurado numa imaculada cópia 4K. Seja como for, os filmes curtos, todos pertencentes à primeira fase da obra de Demy, na transição dos anos 50/60, contêm sinais temáticos e experiências formais que vale a pena sublinhar..Como quase todos os seus companheiros da Nova Vaga francesa, Demy começou por experimentar o formato curto. Poderá julgar-se que se tratou apenas de realizar breves esboços para mais tarde “ampliar” nas longas-metragens. Na prática, não foi totalmente assim - lembremos os exemplos paralelos de François Truffaut (Les Mistons, 1957) ou Jean-Luc Godard (Charlotte et son Jules, 1958). Nas curtas de Demy, em particular, encontramos pequenos ensaios que reflectem linhas de força de um cinema que, com metódica exuberância, estava a repensar a herança dos mais diversos registos clássicos, ao mesmo tempo afirmando uma sensibilidade singular e uma visão muito pessoal..O Belo Indiferente (1958): curta-metragem baseada numa peça de Cocteau..Veja-se, por isso, a reconfiguração da herança realista (sobretudo neorrealista) que encontramos em O Tamanqueiro do Vale do Loire (1956). Por contraste absoluto, deslumbremo-nos com o esplendoroso restauro de O Belo Indiferente (1958), a partir da peça de Jean Cocteau, com o seu cenário dominado por um vermelho-sangue a definir um espaço ambiguamente teatral. Além do mais, Ars (1960) e A Luxúria (1962) são preciosidades que nos permitem conhecer um pouco melhor as linhas simbólicas com que se cose o universo de Demy: no primeiro caso, evocando o santo católico Jean-Marie Vianney e as paisagens das suas deambulações; no segundo, através do diálogo de dois amigos (Jean-Louis Trintignant e Laurent Terzieff) que recordam os tempos de infância em que um deles julgava que a palavra “luxúria” era uma derivação de “luxo” - esta curta integrava uma longa-metragem de episódios, Os Sete Pecados Mortais, em que participavam, entre outros, Godard, Claude Chabrol e Roger Vadim..Da fala ao canto.Os filmes de Demy surgem agora com chancela da Leopardo Filmes. Estão a passar, para já, em sessões dos cinemas Nimas (Lisboa) e Trindade (Porto). A partir de janeiro, e até finais de fevereiro, a sua distribuição irá sendo alargada a diversas salas do país, incluindo Teatro Campo Alegre (Porto), Theatro Circo (Braga), Teatro Académico Gil Vicente (Coimbra), Centro de Artes e Espectáculos (Figueira da Foz) e Auditório Charlot (Setúbal)..Jeanne Moreau e Claude Mann em A Baía dos Anjos (1963)..Estamos perante aquela que é, por certo, a maior reunião de títulos de Demy desde que em 1983 a Cinemateca Portuguesa lhe dedicou uma retrospetiva integral - por mera curiosidade, refira-se que, agora, nas longas-metragens, só não está presente Lady Oscar (1978), uma produção franco-japonesa capaz de reinventar os pressupostos tradicionais do “filme histórico”, tendo como base a BD (manga) Rosa de Versalhes (1972), da autoria de Riyoko Ikeda..Com a presença do próprio Demy, essa retrospetiva de 1983 aconteceu quando o seu trabalho mais recente (antepenúltimo da sua filmografia) era Une Chambre en Ville/Um Quarto na Cidade (1982), um dos títulos que, depois da passagem na Cinemateca, permaneceu por estrear nos circuitos comerciais portugueses. Sendo uma das apoteoses do cinema musical que Demy simbolizou como ninguém na produção francesa (e, afinal, europeia), é também uma das experiências que mais e melhor nos ajuda a compreender que a sua filiação na tradição (do musical, precisamente) está longe de o definir como um “copista” das regras dessa tradição..Model Shop (1969), com Anouk Aimée, rodado nos EUA..Um Quarto na Cidade começa por ser um genuíno melodrama - e, mais do que isso, um melodrama carregado de componentes políticas. Em cena está o romance de um operário (Richard Berry) e uma mulher de uma família aristocrata (Dominique Sanda), tendo por pano de fundo uma greve de trabalhadores da cidade de Nantes, em 1955: são memórias do próprio Demy, já que a sua juventude foi vivida em Nantes, cidade do Oeste francês, no estuário do rio Loire, onde o seu pai tinha uma garagem e a mãe trabalhou como cabeleireira. A dimensão melodramática transfigura-se e, de alguma maneira, intensifica-se através das nuances do dispositivo musical: este é um musical em que, de facto, não há diálogos falados - tudo é cantado..Demy retomava o formato de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo em que, obedecendo a uma lógica que não é estranha a matrizes da ópera, as personagens dialogam sempre a cantar. Curiosamente, a partitura de Um Quarto na Cidade tem assinatura de Michel Colombier (1939-2004), por uma vez quebrando o laço de trabalho com o compositor Michel Legrand (1932-2019)..Música e magia.Em 14 de maio de 1964, em Cannes, quando recebeu a Palma de Ouro (que, em boa verdade, na altura, ainda tinha a designação oficial de “Grande Prémio”) por Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, atribuída por um júri presidido por Fritz Lang, Demy fez questão em chamar Legrand ao palco. Para ele, tratava-se de sublinhar o valor de uma contribuição essencial para todo o seu sistema formal e narrativo..Jacques Demy e Yves Montand nas filmagens de Trois Places pour le 26 (1988)..Historicamente - e também no plano da mitologia cinéfila -, o nome de Legrand surge sempre citado pelo seu contributo vital para os dois filmes que continuam a definir as peculiaridades do legado de Demy: Os Chapéus de Chuva de Cherburgo e, três anos mais tarde, As Donzelas de Rochefort. Sem esquecer que são também momentos decisivos na carreira de Catherine Deneuve: no primeiro, transformando-a, instantaneamente, numa das estrelas universais da produção francesa; no segundo, formando um par inesquecível com a irmã, Françoise Dorléac. A memória radiosa e feliz de As Donzelas de Rochefort ficará para sempre marcada pelo seu fim trágico - Françoise faleceu no verão de 1967, contava 25 anos, num acidente de automóvel próximo de Nice, cerca de três meses depois da estreia do filme..A música de Legrand está, desde logo, presente nas duas primeiras longas-metragens de Demy - Lola (1961) e A Baía dos Anjos (1963) -, filmes que contêm também os dois primeiros admiráveis retratos femininos da sua filmografia, com interpretações de Anouk Aimée e Jeanne Moreau, respetivamente. É ainda essencial na ambiência de fábula de A Princesa com Pele de Burro (1970) e O Acontecimento Mais Importante desde que o Homem Chegou à Lua (1973), este com um argumento “insustentável” (Marcello Mastroianni interpreta um homem que engravida...) que Demy resolve com desconcertante elegância e humor..Pelo meio estão duas belas derivações de produção, uma nos EUA, outra no Reino Unido, ou seja, respetivamente, Model Shop (1969), reencontrando Anouk Aimée, e O Tocador de Flauta (1972), com interpretação e música de Donovan. A filmografia de Demy concluiu-se com Parking (1985), o único filme que se arrependeu de dirigir devido a desentendimentos com o protagonista Francis Huster, e Trois Places pour le 26 (1988), comovente testamento sobre o mundo do espetáculo com a presença emblemática de Yves Montand..Há uma tradição cinéfila que “obriga” a definir o cinema de Demy através de um sugestivo trocadilho favorecido pela língua francesa. Estamos perante um universo de inusitadas maravilhas que justifica um subtil exercício de encantamento. Assim, podemos dividir a palavra “enchanté” (encantado) em “en chanté”, ficando com uma espécie de programa estético (ou seja, à letra: em cantado). Em 1963, numa entrevista televisiva por altura do lançamento de um álbum de Michel Legrand com a banda sonora de A Baía dos Anjos, Demy referia-se à música como uma entidade que está muito para lá de qualquer complemento sonoro - isto porque, dizia ele, há nas notas musicais um “poder mágico”. Seis décadas mais tarde, a magia persiste.