Se lhe perguntarem para dizer o nome de uma mulher compositora de música, lembra-se de algum? Esta é uma das perguntas que Inês Thomas de Almeida costuma fazer aos seus alunos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde leciona a cadeira Mulheres Compositoras, História da Composição no Feminino desde a Idade Média até o século XXI. A resposta não sai fácil, mas a musicóloga, investigadora e docente garante que há muitas e está a preparar um livro com pelo menos cem. O CRIVO - Festival de Mulheres compositoras, que terá a sua primeira edição de 18 de setembro a 2 de outubro, e de que Inês Thomas Almeida é curadora, nasceu da iniciativa de uma ex-aluna, Luísa Correia da Silva, precisamente para combater o desconhecimento em relação às mulheres que ao longo da história compuseram música, e música de qualidade. As obras, de compositoras da Idade Média até ao presente, serão interpretadas pelo Grupo Vocal Olisipo, a soprano Camila Mandillo, o pianista Raúl da Costa, o agrupamento de cordas Camerata Atlântica, a orquestra barroca Real Câmara e a Orquestra Gulbenkian, dirigida pela maestra Tianyi Lu e com Jay Campbell no violoncelo.O que despertou o seu interesse pela questão do apagamento das mulheres compositoras na história da música? É fruto dos tempos também?Também é fruto dos tempos, naturalmente. A questão da visibilidade das mulheres é algo que começa com mais ímpeto no século XX. De repente começaram a aparecer uma ou outra, a Fanny Mendelssohn, a irmã de Felix Mendelssohn, a Clara Schumann, mulher do Robert Schumann. Há sempre as irmãs e as filhas e as mulheres dele, e as mães dele. E apareciam como se fossem umas grandes exceções. E à medida que vão aparecendo essas exceções, as pessoas que estão interessadas no assunto começam a pensar – mas serão só estas? Para mim foi isso.A conclusão é que afinal houve muitas ao longo dos séculos e tiveram impacto na evolução da música?Houve sempre mulheres compositoras, em todas as épocas, em todas, desde que o mundo é mundo, sempre houve mulheres a compor. A questão é que sempre tiveram, regra geral, muito mais entraves, muito mais obstáculos do que os homens, mas não quer dizer que não tivessem existido, e não quer dizer que não tivessem tido visibilidade, impacto, ação decisiva no seu tempo.Então porque foram esquecidas?Acontece que, além dos entraves todos que têm em vida, o maior problema, para mim, em termos da visibilidade, de como é que aquela obra chega a nós ou não, não tem a ver com a sua existência, com o facto de terem tido obra feita, impressa, tocada, impacto, etc. Tem a ver com aquilo que eu chamo a dupla morte das mulheres compositoras. Morrem biologicamente e morrem depois, porque as gerações seguintes, pejadas de preconceitos, dizem que as mulheres antigamente não faziam nada, ou as mulheres não têm interesse nenhum, ou – esta é que é a maior – a assunção que as mulheres são incapazes de produção intelectual e, portanto, é depois de elas terem vivido que há o desinteresse. Isto é uma mulher, nem vou ver os papéis... Era a mulher de, a mãe de, a filha de, e aí é que entra o grande entrave.Então ao nível da investigação académica na área da música, as mulheres não despertaram interesse nenhum? Houve historicamente um desinteresse total por causa destas assunções a priori. Eu costumo dizer isto muitas vezes em conferências e aos meus alunos: há uma atitude que é extremamente nociva, às vezes com ótimas intenções, às vezes com péssimas, mas o efeito é o mesmo, que é precisamente a assunção de que as mulheres não tinham produção intelectual, ou porque não eram capazes de produção intelectual, uma coisa pejorativa, ou porque eram vistas como coitadinhas, estavam todas tão oprimidas, não as deixavam fazer nada e por isso nem vamos olhar, porque elas não faziam nada. Mas fizeram?Fizeram. Não se pode passar uma borracha por cima de tudo. Fizeram e fizeram muito. Só para lhe dar uma ideia, houve mulheres a ter produção de óperas, contratadas pelas maiores óperas do seu tempo e do seu espaço geográfico, condecoradas, com ordens honoríficas... Mulheres a ganhar imenso dinheiro, mulheres a emancipar-se financeiramente, a refazer a sua vida, a sua carreira. Mulheres que foram consideradas o melhor compositor ou compositora do seu tempo. E houve, claro, as mulheres a esconder-se atrás do anonimato, as mulheres que não podiam fazer nada. Houve também tudo isto. Há uma mistura muito grande, não se pode ver as mulheres como um bloco monolítico. As mulheres, todas elas, todas elas não conseguiram, não foram, escreviam anonimamente... E depois começam as asneiras... todas as mulheres compuseram da mesma maneira, todas as mulheres compõem de maneira feminina, muito suave, que é uma coisa que está muito dentro das cabeças das pessoas. O que é visto como feminino ou masculino também evolui historicamente...Não gosto da palavra evolui, porque isso pressupõe uma direção, mas modifica-se, muda muito. Aquilo que nós associamos a homens ou a mulheres é uma construção histórica cultural, varia de época para época. Na minha primeira aula ouvimos várias músicas, umas que são de compositores, outras que são de compositoras, e peço aos alunos para identificarem. Por exemplo, uma sinfonieta militar, ou uma coisa de fazer chorar, muito sensível, suave, etc... Pode ser de um homem, pode ser de uma mulher. Um exemplo clássico que eu dou é uma peça feita por uma compositora checa, Vítězslava Kaprálová, em 1939, que foi o ano em que Hitler invadiu a Checoslováquia. Toda a gente tinha o Hitler e as tropas na cabeça, todos os compositores e compositoras escreveram coisas militares. Na Prússia, um Estado extremamente militarizado, houve imensas compositoras a escrever marchas militares. Não tinha nada a ver com género, era a época. Ou nos salões, no início do século XIX, o Schubert, o Schumann, escrevem aquelas canções de fazer chorar. E ninguém diz ‘isto é pouco masculino’. Não, era uma coisa muito sensível que também fazia parte do gosto. Portanto, dizer que as mulheres compunham de maneira feminina, é estar a olhar para elas como um bloco monolítico. O género é um dos pozinhos da receita, mas há mais. E isso vai ver-se nas compositoras do festival? Fale-nos da mais antiga até à mais moderna do programa.A mais antiga é a Cássia de Constantinopla, uma mulher que assinava com o seu nome as suas composições musicais no século IX. Criou uma comunidade de mulheres, um mosteiro, cujas peças, curiosamente, são tocadas ainda hoje no chamado Tropário de Cássia na liturgia da Igreja Ortodoxa Russa, na quarta-feira de Cinzas. São peças que, desde o início, tiveram um impacto enorme, também por razões políticas, depois eu explicarei isso tudo, porque cada concerto tem uma uma mini-palestra minha para explicar e contextualizar. A Cássia era uma mulher imbuída na ação política do seu tempo. É muito interessante, a questão dos mosteiros, e vamos ter também o mosteiro de Arouca. Há uma ideia muito camiliana, muito século XIX, de que era um castigo para as mulheres, coitadinhas, porque não casavam, não tinham um homem... Mas a verdade é que os mosteiros eram espaços de liberdade feminina e houve muita criação de música por aí.E em relação às compositoras mais modernas?As mais modernas são pessoas que estão vivas agora, como Ângela da Ponte, Andreia Pinto Correia.Pelo meio tem outras, como a irmã de Mendelssohn...A irmã de Mendelssohn que se chama Fanny Mendelssohn, não é irmã de ninguém, é a Fanny Mendelssohn. Claro que é difícil escolher um programa, há sempre centenas e centenas de nomes que terão que ficar de fora. Mas a ideia foi fazer um apanhado, isto é um primeiro festival, é uma mostra daquilo que existia em várias épocas, uma espécie de mostruário. Começamos com a Cássia, temos a Hildegard von Bingen, que é a que as pessoas conhecem mais, por ter sido santificada recentemente por Bento XVI. É uma mulher da Idade Média, que tem uma obra musical enorme, e tem o único drama litúrgico medieval que nos chegou do princípio ao fim. É desta mulher, Hildegard von Bingen. Havia muito na Idade Média, sabemos da sua existência, mas só nos chegaram fragmentos.Também há contemporâneas, por exemplo, de Mozart ...Sim, temos a Maria Theresia Paradis, e depois temos a Maria Teresa Agnesi, que é de 1770. Ela era uma grande, grande cravista e compositora, tocava muitas peças de vários compositores, e o pai do Mozart, em 1770, tinha o Mozart 14 anos, quando foi fazer uma das suas digressões em Itália, contactou-a para lhe pedir ajuda, para saber quem é quem, etc. Mas antes mesmo disso, temos vários compositores do período barroco, temos uma compositora muito interessante, que é a Leonora Duarte, que é de ascendência sefardita. Tem este nome, Leonora Duarte, mas nunca esteve em Portugal, é dos judeus sefarditas de Antuérpia, que foram para lá no século XVII, e ela tem uma obra muito original. Portanto, passamos a Idade Média, o Renascimento, temos o barroco, temos o período clássico, que é onde vamos encontrar cada vez mais mulheres, e o período romântico também.E há compositoras portuguesas entre as mais antigas?Outra das coisas que presidiu à elaboração deste programa, foi haver sempre, em todos os concertos, música de mulheres portuguesas, um ou mais exemplos portugueses. Estamos em Portugal, parte da minha investigação também é essa, interessa mostrar isso. No primeiro concerto, temos o Hino a São Bernardo de Claraval, que vem do mosteiro feminino de Arouca, que é o primeiro exemplo que conhecemos de música a várias vozes em Portugal, chamada música polifónica. No canto gregoriano está toda a gente a cantar a mesma coisa, mas depois, em algum momento na história da música, alguém se lembra, e se fossem vozes diferentes? E o primeiro exemplo que nós temos disso, em Portugal, é do mosteiro feminino de Arouca, sem nome, mas isso é comum nos mosteiros. Vamos ter, por exemplo, no concerto para piano, uma compositora que é da minha investigação, que é a Joana Benedita Faria Pinho (1850 - 1939), cujas partituras foram publicadas pela primeira vez numa revista feminista, a revista A Mulher - Revista Ilustrada das Famílias, que entre 1883 e 1885 teve uma publicação semanal. A diretora era Elisa de Paiva Curado, e esta Joana Benedita Faria Pinho era cunhada da Elisa de Paiva Curado e publica imensas peças, primeiro sob anonimato, só com a sigla do nome com as letras invertidas, mas aquilo é uma espécie de código para os entendidos. Tenho que fazer um pequeno disclaimer sobre esta compositora que me é especialmente querida e sobre a qual eu tenho o privilégio de ter muitas coisas, tenho um espólio muito grande. Pude fazer esta investigação, porque a diretora desta revista, a Elisa de Paiva Curado, é a minha trisavó Elisa. Eu sou Inês Elisa por causa dela. E esta Joana Benedita Faria Pinho, era cunhada dela e minha tia trisavó. Ela tem muitas coisas para piano publicadas nestas revistas e vai ser tocada agora pela primeira vez aqui. E quem a vai interpretar?O Raúl da Costa, que é um pianista maravilhoso. Eu fiz questão de que neste festival os intérpretes fossem muitas vezes homens. Porque não é uma coisa de nicho. Não é uma música que só interessa às mulheres. Porque eu não quero que isto pareça uma coisa para as senhoras. Não é. . As compositoras que vão mostrar não aparecem na programação das salas de concerto?Não aparecem, cada vez aparecem mais, mas aparecem pouquíssimas. Aliás, há uma fundação, que é a fundação Donne Foundation, do Reino Unido, que faz um trabalho exemplar. Eles, todos os anos, vão analisar a programação dos concertos em mais de cem orquestras sinfónicas do mundo inteiro por temporada. Desde a Orquestra do Lincoln até à Orquestra Nacional de Toronto, à Orquestra da BBC, à La Scala de Milão, tudo. O último estudo que saiu foi o de 2023/2024. E vão ver a percentagem de homens e mulheres nas peças todas que foram tocadas, no total são mais de 21 mil peças, cada ano, espalhadas pelo mundo inteiro, em todos os continentes. E então é mais ou menos assim: em números redondos, 7%, às vezes 7,3%, 7,5%, mas 7% das peças tocadas nos programas das orquestras do mundo inteiro são de mulheres e 93% são de homens. E nas últimas duas avaliações, o número regrediu. E dessas 7%, penso que 5,5% são de compositoras vivas e o restante, 1,5%, de compositoras históricas. Ou seja, são sobretudo compositoras vivas, que estão ali ao lado e que as pessoas conhecem, que viram no jornal, ou que trabalharam com elas. Ou então dizem que antigamente não havia compositoras, mas estas há, portanto, há um desconhecimento enorme.E estas compositoras podem ser equiparadas em termos de qualidade?Não tem nada a ver com qualidade. O tempo todo em que falei de compositoras nesta entrevista, só falei de compositoras de grande qualidade. Todas as compositoras que estão neste programa estão lá por terem uma qualidade enorme. Portanto, a razão pela qual as pessoas devem vir assistir a este programa, não é por serem mulheres, é porque é muito boa música, é música excelente, que normalmente não está nos programas de concerto. Há música muito boa que não está a ser tocada por preconceito ou por desconhecimento. E, hoje em dia, encontro muito mais a segunda razão do que a primeira, ou seja, as pessoas não programam porque não conhecem, não é sequer por má vontade. Daí eu ter todo este envolvimento, nos cursos que dou, nas divulgações que faço, e ter dito que sim a este festival. São peças nunca tocadas? São novas no repertório de quem as vai interpretar? Há de tudo, há conjuntos que já tinham tocado algumas, uma ou outra. Há que dizer o seguinte: não estamos a inventar a roda, há muito boa gente em Portugal, e fora de Portugal, que tem estas preocupações e que partilha desta questão de que devemos tocar esta música, porque é muito boa... Por exemplo, a Real Câmara já tem tocado obras de compositoras, o Ludovice Ensemble tem feito um trabalho notável de divulgação com obras de mulheres, não um concerto só com mulheres, mas incluindo mulheres, que é o que eu acho que deve ser feito, incluir com naturalidade esta música, que é muito boa, nos programas de concerto.A sinfonia que vai ser interpretada pela Orquestra Gulbenkian com direção de Tianyi Lu é uma estreia? A sinfonia em Fá sustenido menor de Dora Pejačević é uma estreia nacional. Há muitas peças que aqui estão que não são estreias, já foram tocadas, mas também há muitas que são estreias, e essa sinfonia é o caso, é uma sinfonia maravilhosa. Eu quis absolutamente que um dos concertos tivesse uma orquestra sinfónica, também para mostrar como em todos os géneros musicais houve sempre mulheres a compor, desde música à capela por um conjunto de freiras, até uma orquestra sinfónica, até uma ópera.Não conseguimos agora, para este ano, fazer uma produção de uma ópera inteira, mas temos no concerto barroco, por exemplo, várias áreas de ópera, óperas de mulheres. Uma das áreas é de uma ópera de Maria Antonia Walpurgis da Baviera, com o libreto dela própria, sobre as Amazonas. Há muitas mulheres que escreveram imensas óperas, há muitas mulheres que escreveram imensas sinfonias, que andaram a fazer turnê na Europa inteira, nos Estados Unidos, que foram conhecidas. .Jacinto Lucas Pires: "Estamos a perder palavras. Como pensamos por palavras, estamos a perder capacidades".Valter Hugo Mãe: "A verdade é muito digna. Mas eu trocaria a verdade por um verso"