A infância de Trevor Noah durante o "apartheid" não foi uma comédia
Trevor Noah tinha cinco anos quando Nelson Mandela foi libertado. Ou seja, quando ele nasceu a África do Sul vivia no sistema de apartheid e quando ele era um adolescente o país estava ainda a viver momentos conturbados a tentar aprender a democracia. São as memórias desse tempo que o apresentador de televisão e humorista, atualmente rosto do programa The Daily Show, conta na sua autobiografia, intitulada Sou um Crime, que é agora publicada em Portugal.
Juntando informação básica sobre a história e a vivência da África do Sul com a história da sua família e um pouco de humor, até mesmo quando nos fala de realidades pouco divertidas como a pobreza, a fome, o racismo ou a violência doméstica, Trevor Noah transformou a sua juventude cheia de acne num livro que é um prazer.
O livro começa com a reprodução da Lei da Imoralidade, de 1927, aquela que proibia as "relações carnais" entre europeus e nativos. "Durante o apartheid, um dos piores crimes que se podia cometer era ter relações sexuais com uma pessoa de outra raça", conta Trevor. Os seus pais cometeram esse crime. A mãe, Patrícia Nomnuyiselo Noah, era negra. O pai, Robert, era um suíço-alemão branco ("vocês sabem como os suíços gostam de chocolate", é uma das piadas que costuma usar quando faz stand-up). Era uma relação proibida e ambos sabiam-no, não podiam sequer ser vistos juntos na rua, mas decidiram arriscar e ter um filho planeado: no dia 20 de fevereiro de 1984, Patricia foi para o hospital. "Os médicos levaram-na para a sala de partos, abriram-lhe a barriga e tiraram de lá uma criança meio branca e meio negra que violava um sem-número de leis, estatutos e regulamentos: nasci um crime."
"A miscigenação prova que as raças podem misturar-se (e, em muitos casos, querem misturar-se)", escreve Noah. "Visto que um mestiço personifica essa falha na lógica do sistema, a mistura de raças torna-se um crime pior do que a traição." Como mestiço ou "pessoa de cor", ele não tinha autorização para viver nos bairros negros nem nos bairros brancos. Nesses casos, geralmente as crianças eram separadas das famílias e enviadas para instituições onde só viviam outras crianças "de cor". Os pais de Trevor não queriam que isso acontecesse, por isso ele passou parte da sua infância escondido, sozinho, a brincar dentro de casa. A mãe é, aliás, a figura determinante na sua vida e neste livro, uma mulher cheia de força de vontade e muita fé.
Mas mesmo quando o apartheid começou a desabar, a vida de Trevor Noah continuou a ser marcada pela cor da sua pele e pelo racismo que existia na sociedade sul-africana. Entre os vários cultos religiosos em que a mãe o obrigava a participar, ele aprendeu muito novo a correr para fugir da polícia e de todas as confusões da rua. Aprendeu a importância de falar muitas línguas - e teve a sorte de, apesar de todas as dificuldades, ter uma boa educação e viver em bairros de classe média. Aprendeu que, podendo escolher, mais facilmente se integraria no grupo dos negros pobres do que dos brancos ricos. Ainda que isso lhe fechasse algumas portas.
Na infância, ele era o miúdo mais rápido da escola e também aquele que não tinha vergonha - e foi assim que começou o seu primeiro negócio, correndo para ser o primeiro a chegar à fila da cantina e comprando o almoço para aqueles que estivessem dispostos a pagar por esse serviço. Na adolescência, Trevor era um rapaz inábil nas relações amorosas, que gravava e vendia CDs piratas e trabalhava como DJ em festas. Aos 18 anos era mais um dos rufias do bairro de Alexandra, não estudava e vivia de biscates e negócios pouco claros, chegando mesmo a estar preso. Conseguem imaginar? Com tudo isto e ainda a violência do padrasto dentro de casa, podia ter dado tudo errado na sua vida. Mas não deu - mas essa história já não é contada neste livro.
Trevor Noah, atualmente com 34 anos, começou a sua carreira como comediante de stand up e apresentador de rádio e televisão em 2002, na África do Sul. Tinha apenas 18 anos. Em 2011 mudou-se para os Estados Unidos da América e, no ano seguinte, apareceu pela primeira vez no The Daily Show, de Jon Stewart, do qual, dois anos mais tarde, acabou por se tornar colaborador permanente. Em 2015, quando Stewart decidiu retirar-se, ele tornou-se o apresentador deste talk show que junta o comentário político e o humor (o seu contrato termina em 2022). Em 2018, a revista Time elegeu-o como uma das 100 pessoas mais influentes no mundo.
A autobiografia Sou um Crime, que agora é publicada em Portugal pela Tinta da China, foi originalmente editada há dois anos, tendo figurado nas listas de melhores livros de 2016 de publicações como o jornal The New York Times ou a revista Esquire. Com este livro, Trevor Noah revela-se um grande contador de histórias, escolhendo das suas memórias episódios que ao mesmo tempo que nos mostram como era a dura a vida na África do Sul nos fazem rir (ou, pelo menos, sorrir). Não há lugar a lamúrias nestas páginas. Era assim que as coisas eram, diz-nos. E ele, que era um miúdo, teve que aprender a "safar-se".
Entretanto, foi anunciado que o livro dará origem a um filme e que terá Lupita Nyong'o no papel da determinada mãe de Trevor. O filme será produzido pela Paramount e realizado por Liesl Tommy, mas por agora não se sabem ainda mais pormenores.
Para já, além do Daily Show, Trevor Noah tem um especial de stand up comedy disponível na Netflix, Afraid of The Dark (Medo do Escuro), no qual, como não podia deixar de ser, fala muito de colonização, dos vários tipos de racismo e da importância das línguas e dos sotaques. Por exemplo: a maneira que ele tem de contornar o medo do escuro é falar consigo próprio em inglês mas com sotaque russo que é, diz, o sotaque mais assustador que existe.
O próximo especial do humorista, Son of Patricia (Filho de Patrícia, numa referência à sua mãe), vai estrear na Netflix já a 20 de novembro.
Sou um Crime
Trevor Noah
Editora Tinta da China
Preço: 24,90 euros