Kevin Costner, herdeiro do "western" clássico.
Kevin Costner, herdeiro do "western" clássico.

Horizon. O "western" ainda é o que era

Mais de três décadas depois de 'Danças com Lobos', Kevin Costner assina um “western” grandioso apostado em devolver algum realismo às memórias contraditórias da expansão para Oeste -- o primeiro capítulo de 'Horizon: Uma Saga Americana' chega esta quinta-feira às salas de cinema.
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Kevin Costner está de volta com um “western” intitulado Horizon. A raridade da proposta conduz-nos a uma pergunta nostálgica: afinal, que é feito do “western”? É verdade que não desapareceu, mas não será menos verdade que os actuais herdeiros dos clássicos, mesmo quando criam filmes que nos seduzem, parecem empenhados em encarar o “western” como um género que “falhou” na sua relação com a complexidade da história dos EUA -- observem-se as propostas de O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford (2007), uma espécie de panfleto anti-mitológico assinado por Andrew Dominik, ou O Atalho (2010), em que a realizadora Kelly Reichardt nos garante que há também um feminismo do velho Oeste.

Ora, mesmo não menosprezando as singularidades de tais propostas -- a que poderíamos acrescentar, por exemplo, o vibrante The Revenant: O Renascido (2015), de Alejandro González Iñárritu —, importa começar por dizer que o magnífico filme de Costner nasce de pressupostos bem diferentes. Em termos simples, diremos que Horizon mantém uma relação directa com o património clássico do “western”, mais concretamente com a vocação épica das suas narrativas.

Se procuramos aqui as raízes desse classicismo mais depurado, apostado em lidar com os contrastes e contradições da expansão para Oeste, talvez seja inevitável citar a herança tutelar de John Ford (1894-1973), em particular a fase final da sua filmografia e o emblemático O Grande Combate (1964). Sem esquecer A Conquista do Oeste (1962), uma saga com realização tripartida (Ford, Henry Hathaway e George Marshall) — aliás, convém acrescentar que o título integral do filme de Costner é Horizon: Uma Saga Americana - Capítulo I.

Memórias realistas

Lembramo-nos, claro, de Danças com Lobos que Costner protagonizou e dirigiu com invulgar sucesso: foi um dos títulos mais vistos em 1990, acabando por arrebatar sete Óscares, incluindo o de melhor filme do ano. A ideia base de Horizon -- revisitar a história da expansão para Oeste privilegiando, não a mitologia dos heróis, mas as memórias realistas -- nasceu antes, em 1988, tendo ficado em suspenso até Costner garantir o controle total do projecto, a começar pela sua divisão em capítulos.

Serão quatro capítulos: o primeiro (revelado em maio, no Festival de Cannes) chega agora às salas de todo o mundo; o segundo está pronto e terá também a sua estreia no verão (22 de agosto em Portugal); a rodagem do terceiro iniciou-se em maio e, tal como o capítulo final, ainda não tem data de lançamento. Alguns analistas americanos têm considerado que Costner tenta consumar, assim, uma verdadeira quadratura do círculo: “reproduzir” no cinema o modelo de episódios que tem proliferado nas plataformas de streaming. O paralelismo é, talvez, inevitável, até porque a recente série Yellowstone (SkyShowtime) terá servido de “apresentação” de Costner a alguns espectadores mais distraídos…

Seja como for, seria distração ainda maior não sublinhar aquilo que determina a opção cinematográfica de Horizon, tanto mais significativa quanto estamos, realmente, perante uma verdadeira obra “na primeira pessoa”. Além de co-autor do argumento, Costner surge como produtor, realizador e intérprete da personagem de Hayes Ellison, figura que lhe assenta como uma luva: um negociante de cavalos cujo carácter se define a partir de um misto de cansaço e desencanto, procurando superar a problemática herança das situações de violência física e emocional que já viveu.

A questão da terra

Costner tem, assim, a seu cargo uma das figuras dominantes deste primeiro capítulo, a par da sempre brilhante Siena Miller, interpretando uma sobrevivente de um ataque perpetrado por índios Apache, ou Danny Huston, no papel de um coronel do exército que surge como uma ambígua consciência moral da caminhada para Oeste e também das sequelas políticas e morais da Guerra Civil.

De acordo com o título, estamos perante uma “saga” e um filme em “capítulos”, mas a palavra decisiva será “Horizon”. Nela pressentimos o apelo mitológico da terra que se estende para lá do horizonte, materializando uma utopia geográfica, ética e civilizacional metodicamente decomposta pelas muitas convulsões históricas, a começar pela brutal ocupação de terras ancestrais de várias tribos índias. O certo é que, nesta história, antes mesmo de qualquer ressonância transcendental, Horizon designa um espaço ocupado por pioneiros, dir-se-ia uma cidade utópica, cujo enraizamento está longe de poder ser linear e pacífico.

Horizon: Uma Saga Americana - Capítulo I assume-se, por isso, como um filme que repõe a questão da terra no centro da dramaturgia do Oeste. É esse o sinal mais directo, e também mais decisivo, do realismo que Costner procura reencontrar -- as suas nuances reflectem-se no elaborado trabalho de caracterização, guarda-roupa e cenografia. Nesta perspectiva, as deslumbrantes paisagens de San Pedro Valley, próximo da fronteira com o México, estendendo-se pelo território do Arizona, estão longe de qualquer função banalmente decorativa: são elementos vivos de uma história a ser repensada.

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