Na galeria de mestres do cinema clássico, Alfred Hitchcock (1899-1980) existe, para sucessivas gerações de espectadores, como encarnação de uma ideia de cinema em que as delícias do espectáculo se combinam com a observação filosófica dos destinos humanos. Isso mesmo podemos voltar a admirar, a partir de amanhã, através de mais um ciclo do Cinema Nimas, em Lisboa, que se vai prolongar até 21 de janeiro. Será a primeira etapa de um acontecimento em duas partes, ao todo com 37 filmes (de uma filmografia com um pouco mais de meia centena). Há uma representação importante do período inglês, a começar por Blackmail/Chantagem (1929), momento charneira pela crescente sofisticação do “suspense”, marca “oficial” de Hitchcock, e também pelo seu lançamento em duas versões, uma muda, outra sonora (ambas serão exibidas). Apresentado como “o mais americano dos cineastas ingleses, o mais inglês dos cineastas americanos”, Hitchcock foi, na transição do mudo para o sonoro, um dos mais talentosos pioneiros da produção britânica, quer na elaboração narrativa, quer na experimentação técnica. Desse período será possível ver ou rever mais quatro filmes: O Homem que Sabia Demasiado (1934), Os 39 Degraus (1935), Desaparecida! (1938) e A Pousada da Jamaica (1939). .A fase americana começa por ser recordada com Rebecca (1940), um dos títulos de Hitchcock cuja inspiração provém do universo literário de Daphne du Maurier e também o único de toda a sua carreira que arrebatou o Óscar de melhor filme do ano — valeu-lhe a primeira de cinco nomeações para a estatueta dourada de melhor realização, mas nunca ganhou, tendo recebido um prémio honorário (Irving J. Thalberg Award) em 1967. Dessa fase será possível recordar momentos emblemáticos como Psico (1960), um encontro perverso entre os códigos do cinema de terror e as interrogações psicanalíticas, e Os Pássaros (1963), de novo inspirado em Daphne du Maurier, poderosa parábola sobre a fragilidade do Bem e a omnipresença do Mal cujos ecos bíblicos estão longe de ser acidentais. Não faltarão alguns títulos “atípicos”, explorando desvios temáticos ou dramatúrgicos que escapam ao retrato mais convencional do autor. Será o caso O Sr. e a Sra. Smith (1941), comédia burlesca (“screwball”, de acordo com a designação da época) que nasceu da ligação de amizade com a protagonista Carole Lombard (que viria a falecer um ano mais tarde num desastre de avião, contava 33 anos). Sem esquecer o maravilhoso Sob o Signo de Capricórnio (1949), inusitado “drama de época” na Austrália da primeira metade do século XIX em que podemos descobrir uma das mais prodigiosas composições da carreira de Ingrid Bergman. Um figurante especial .Se nos lembrarmos que as peripécias “policiais”, por vezes irónicas, de todos estes filmes envolvem sempre alguma observação das formas mais sombrias da natureza humana, talvez possamos acrescentar que um sinal de tal paradoxo está nas célebres “aparições” do autor. Desde o período inglês, Hitchcock cultivou o gosto de surgir como um figurante em que reparamos de forma inesperada, quanto mais não seja porque sentimos que a sua presença no “meio” da história que nos está a contar tem qualquer coisa de uma assinatura com tanto de intencional como de paródico. Vêmo-lo, por exemplo, como passageiro do comboio que serve de cenário ao mistério de Desaparecida! (1938), na festa de Difamação (1946) em que Cary Grant e Ingrid Bergman tentam esconder o segredo que os une, ou ainda em Stage Fright/Pânico nos Bastidores (1950), olhando, intrigado, para Jane Wyman no papel da actriz enredada numa teia inquietante de inocência e culpa. Vêmo-lo ainda nas margens do Tamisa na abertura de Frenzy/Perigo na Noite (1972), penúltimo título da sua filmografia, a escutar o discurso de um político que exalta o combate à poluição do rio... onde vai aparecer um cadáver a flutuar. Num misto de amargura existencial e humor cáustico, esse filme que o fez regressar a Londres é também uma obra-prima que quase desapareceu de circulação. .Para redescobrir os primeiros seis filmes de Fernando Lopes .Slavoj Zizek e os pássaros que não sobreviveram