A Angra do Heroísmo, primeira cidade do arquipélago dos Açores (categoria a que foi elevada em 1534), nunca faltaram presenças notáveis (de Vasco da Gama a D. António, Prior do Crato, sem esquecer o trágico rei Afonso VI, para ali desterrado por ordem do próprio irmão), mas não é deles que se ocupa o Festival Rua Direita, anualmente realizado pela Companhia de Teatro Cães do Mar. É daqueles a quem o vento e as marés facilmente apagam o rasto, mas cujas histórias de amor e desamor, esperança e perdição foram vividas em alguns dos espaços mais marcantes do centro histórico da cidade. O programa começou a ser apresentado a 10 de Julho, mas os espetáculos voltarão à cena entre amanhã (dia 17), e domingo, 20. São pequenas peças de teatro, dança, música e performance que ganham vida, não entre as paredes de um teatro, mas em vários espaços não apenas da chamada Rua Direita, mas também das artérias vizinhas, como a histórica loja Basílio Simões, a moagem, a livraria Lar Doce Livro e, a finalizar, as varandas da Rua da Palha. Já na quinta edição (começou no Verão de 2021), este ano, a Rua Direita tem por mote “A encruzilhada dos ventos”.O objetivo, como nos explica a diretora temática e fundadora da Cães do Mar, Ana Brum, é “pôr em destaque aquilo que consideramos ser um traço distintivo da identidade açoriana, que é a confluência de pessoas e culturas. Os Açores são uma terra de migrantes, quer dos que daqui partem, a maior parte dos quais nunca regressa, quer dos aqui chegam”. Para a companhia, sedeada em Angra, mas composta por elementos de diversas origens, “é importante recordar à comunidade que, na realidade, somos todos estrangeiros porque, no século XV, quando os portugueses cá chegaram, as ilhas estavam desertas e foram povoadas por gente que veio de Portugal continental, mas também de muitas outras paragens, como evidenciam apelidos aqui muito frequentes como os Brum ou os Bettencourt.” Uma mensagem que consideram ainda mais importante quando os Açores (tal como a Madeira) se preparam para celebrar o cinquentenário do regime autonómico, já no próximo ano.Nas ruínas da antiga Pensão Lisboa, a luso-brasileira Bianca Mendes encanta miúdos e graúdos na pele de uma gentil fantasma, que desfia, com a melancolia dos amores contrariados, as histórias de antigos hóspedes, a partir dos objetos que estes deixaram para trás. Em fundo, ouve-se o tema composto por António de Névada, Canção de Barco de Cabo Verde”. .De saudades e de forasteiros, alimentados por sabores e aromas exóticos, fala-nos também o cabaret culinário de Lara Costa e Derek Nisbet na loja Basílio Simões, onde não faltam sequer os ritmos da Bahia, as tempestades do mar irlandês e a sombra de Wyatt Earp, lenda do velho Oeste, ou não fossem estas ilhas habitadas por gente enfeitiçada pelo sonho americano. Mas também o diretor artístico da companhia, Peter Cann, nos conta as dificuldades linguísticas de um inglês de Liverpool na ilha Terceira: “Afinal, quem nasce nas margens do rio Mersey, não fala inglês como Hugh Grant ou Judi Dench”, adverte.A ligação à memória edificada e afetiva da cidade é vital para a Cães do Mar. Para Ana Brum, estes espetáculos “têm também o mérito de chamar a atenção dos espetadores, locais ou não, para a nossa riqueza urbanística, até porque, em regra, não somos muito cuidadosos com ela, apesar da classificação como património da humanidade pela UNESCO, em 1983.” Num tempo em que o monstro da especulação imobiliária já abocanha os Açores, este festival é também uma oportunidade para partilhar com a comunidade espaços pouco conhecidos mesmo dos locais, como a moagem, autêntica relíquia da arqueologia industrial do princípio do século XX ainda em laboração, onde tem lugar a performance de dança de Catarina Mota e Paulo Quedas, dirigida por Francisco Camacho, Ausente.Ao longo destes cinco anos de Rua Direita, Ana Brum sente que já se conquistou um público na comunidade local: “Somos muito procurados pelos ATL’s, com a participação de muitas crianças, o que é muito importante para nós, mas também por avós, que trazem os netos, para conhecerem as histórias de certos espaços que conheceram na sua juventude.” Ao facto não será estranho, aliás, todo o trabalho de investigação subjacente a vários dos espetáculos apresentados.Muito importantes são também as mensagens cívicas como as da performance “Marilhar” (no fontanário sobre a marina de Angra), em que Diana Rosa (dança) e Félix the First (música) despertam consciências para as consequências da poluição para a fauna marinha. O entusiasmo que as tribulações de uma ave de arribação desperta nos mais novos demonstra bem o seu sucesso.Com o apoio sustentado da Direção Geral das Artes, a Cães do Mar envolve, nesta Rua Direita, todos os elementos da sua companhia, mas procura, a cada nova edição, trazer pessoas e contributos novos. “A logística tem vindo a crescer de ano para ano e o interesse local e regional também”, diz ainda Ana Brum. Na edição deste ano, juntaram-se à equipa o coreógrafo Francisco Camacho, mas também Sara Sinai, João Félix e João Evangelho, artista plástico que assina as montras das lojas envolvidas. “Esta é uma área nova para nós”, conta Ana, “mas queremos apostar nesta interdisciplinariedade. Também queremos chegar ao audiovisual e, com isso, atrair os mais jovens para o projeto.”Se estiver por Angra, vale mesmo a pena esperar pela apoteose de domingo de manhã, quando as aves da ilha se reunirem em concílio, com o objetivo de coroar uma rainha que as represente. Os estorninhos coscuvilham, as outras aves discutem, os pombos, fiéis à sua natureza, dedicam-se ao que fazem melhor e a gaivota candidata-se ao cargo. Mas o que irá realmente acontecer, além de muita cantoria? Tudo a partir das varandas da Rua da Palha, com a interpretação do grupo A Matilha e do coro Padre Tomás de Borba da Academia Musical da Ilha Terceira e música de Derek Nisbet e Felix the First. A não perder..Katia Guerreiro celebra 25 anos de carreira com celebração “das pessoas que são inspiração”