O português Nuno Marques e a americana Mariel Mayz conheceram-se em Espanha, apaixonaram-se e escolheram fazer vida a dois nos Estados Unidos (na realidade, agora a três, mas já lá vamos), e criaram juntos o Porto PianoFest, que este ano vai ter a sua décima edição, entre 1 e 12 de agosto. Como prova de que a vida é uma mão cheia de (im)probabilidades, conversaram com o DN em Lisboa, numa cerimónia promovida pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) a propósito da celebração do 40.º aniversário. No auditório da FLAD, juntamente com o maestro José Eduardo Gomes, Nuno e Mariel mostraram como são ambos virtuosos do piano, e, num espírito muito luso-americano, tocaram fados de Alexandre Rey Colaço e músicas de George Gershwin.“Conhecemo-nos num festival de piano em Espanha, nas Astúrias, em Gijón. Conhecemo-nos nesse festival, no verão, estávamos lá os dois como pianistas participantes”, conta Nuno. “Na época, eu estudava com um professor de piano espanhol e fui participar no festival com ele”, acrescenta Mariel, num português fluente. Estávamos em 2013 e Nuno, que viveu em Londres durante sete anos, já tinha planeado ir para Nova Iorque fazer o doutoramento. E Mariel vivia em Nova Iorque. “Ao longo do tempo conhecemo-nos melhor, estávamos na mesma universidade, no mesmo curso, na mesma classe de piano”, acrescenta o pianista português, recordando os primórdios do relacionamento, da tal vida a dois que, com o nascimento de Luca há poucas semanas, passou agora a ser a três, para grande felicidade do casal luso-americano. Contam que na escolha do nome do filho a única condição era que fosse um nome que resultasse nas duas culturas, nas duas línguas.Nuno é portuense. E conta um pouco do seu percurso: “nasci no Porto, e os meus pais vivem ali perto, em Famalicão. Fiz o conservatório em Santo Tirso, numa escola profissional pioneira em Portugal. E quando acabei, aos dezoito anos, fui para Londres. Fiz a licenciatura na Guildhall School of Music and Drama, e depois o mestrado no Royal College of Music. Voltei para Portugal durante algum tempo, mas era a minha intenção fazer doutoramento desde sempre, e queria um modelo de programa que havia nos Estados Unidos. Naquela altura em Portugal e na Europa havia menos opções, esse tipo de programa não estava muito desenvolvido, que era um doutoramento em performance - um DMA, Doctor of Musical Arts - e então queria ir para os Estados Unidos, e também descobrir esse mundo cultural, e essa parte do mundo. Foi então o momento e a circunstância ideal. Quando nos conhecemos eu ia viver para Nova Iorque, foi mesmo antes”.Mariel é nova-iorquina: “nasci em Nova Iorque, mas como muitos americanos, sou uma mistura de culturas. Sou metade venezuelana e a outra metade é grega e judia”. Diz que quando conheceu Nuno não falava nada de português. “Sabia dizer obrigado”, conta, entre risos. Mas a aprendizagem foi facilitada pela vontade do marido de manter laços forte com o país de origem, mesmo estando a fazer uma carreira profissional nos Estados Unidos. “Tenho muitas vindas a Portugal e muitos anos já a organizar o festival. Venho cá estar com a família. Isso ajuda muito”, sublinha Mariel. Nunca teve aulas. “Aprendi a falar com o Nuno e com a mãe dele, a minha sogra”. Fala um pouco de espanhol também, mas confessa que “isso geralmente não me ajuda, porque dá-me mais confusão”.Curiosamente, os tempos fechados em casa e sem poder viajar durante a covid-19 foram uma ajuda. “A pandemia ajudou, porque estávamos a falar sempre no videochat, facetime com a família do Nuno, estávamos em Nova Iorque e depois da pandemia também o André, o nosso produtor, teve um filho nesse tempo e toda a gente estava a falar devagarinho pela primeira vez e aprendi”, conta Mariel.A pianista americana confessa que não sabia nada de Portugal antes de conhecer Nuno. Nunca tinha visitado até então. E que foi surpreendente o país que descobriu: “foi uma grande surpresa. Não fazia ideia da riqueza da história, de tudo. Passei duas semanas da primeira vez, no norte, onde vive a família. E depois nas seguintes viagens conheci Lisboa, o Algarve, o Alentejo”.Portugal passou a ser um país familiar, mas também de trabalho para a nova-iorquina: “tenho muitas oportunidades de tocar aqui e adoro os fados e a música portuguesa, a cultura portuguesa. Sinto que faz parte de mim. Agora estou sempre a pedir desculpa ao Nuno por roubar um pouco da cultura dele”.Sobre como é viver como pianista nos Estados Unidos, Nuno diz que é uma carreira que é sempre “uma mistura das coisas: sempre com um lado académico, um artístico, um virado para o ensino”. Mariel também assume essa polivalência: “eu dou aulas, toco, sou compositora, também professora universitária, gestora. Faço tudo isto. É uma opção de vida também fazer tudo isto. Com tudo isto que faço, não me sinto menos música, mas sim mais completa”. Nuno concorda: “é parte da nossa atividade. E tudo isto é relacionado com música, portanto, a carreira é feita de todos estes elementos, de toda a atividade”. Mariel acrescenta ainda: “a parte letiva que desenvolvo em Harvard e no Hunter College, é toda à volta da música, toda à volta das artes. E a carreira de músico não é só a carreira da pessoa que apenas toca concertos, isso já acabou, já não é um modelo que se utiliza. Aquele músico que passa 12 horas por dia só a tocar e a dar concertos. Ser músico hoje é muito mais exigente; o músico tem que saber falar, tem que saber apresentar, tem que saber dar aulas, tem que saber gerir. A maioria dos músicos tem que ser o seu próprio manager”.Mas se Mariel cresceu rodeada pela musicalidade da sociedade americana, já Nuno cresceu fascinado pela música da América, a querer aprender mais, a estudar cada vez mais profundamente: “era uma forma de entender a música que me era desconhecida, porque para nós é quase desconhecida na Europa, e eu tinha muita curiosidade”. É um país onde a música é muito popular, mas que é forte na música erudita também, sublinha. Sobre Gershwin, que interpretaram no auditório da FLAD, Nuno explica que “é a fronteira entre as duas, é o início do jazz, e a fusão com a música mais erudita. É parte americana da fusão porque ele tem formação clássica, e a escrita pianística e musical é também muito clássica, é muito estruturada, bem feita, mas transcrita com uma linguagem já muito americana, muito própria e idiomática”. Além de Gershwin, Nuno assume como uma das suas referências entre os compositores da música clássica americana Aaron Copland.Em Lisboa, além de Gershwin, interpretaram fados ao piano, o que têm feito bastante também nos Estados Unidos. “Não há canto. São obras escritas para piano, originais. E resulta muito bem, são obras extremamente bem escritas e bem sucedidas. Os americanos adoram. Por exemplo, fiz um concerto com alguns fados, no 10 de Junho do ano passado, com a organização do consulado-geral português em Nova Iorque, com muitos convidados da cônsul - muitos luso-americanos, portugueses, americanos, e correu muito bem”, explica Nuno.Para Mariel, o fado deixou de ser um mistério para passar a ser quase uma obsessão, pois sabe a importância que o género tem na música portuguesa. “Nas minhas primeiras viagens, queria saber tudo, conhecer tudo e ouvi muito dos clássicos de Amália, mas também Mariza e outros fadistas contemporâneos. E agora em Nova Iorque há muitos artistas que passam pela cidade, nomes mais contemporâneos, e como fazemos parte da comunidade luso-americana há muitas performances que gostamos de assistir”, diz a americana.A poucas semanas da tal décima edição do Porto Pianofest, um festival de verão, que acontece na primeira quinzena de agosto todos os anos, desde 2016, Nuno não esconde o entusiasmo com o programa que está ser preparado. “Temos habitualmente cerca de 30 concertos por ano no festival, em que apresentamos duas semanas de música, Temos concertos na Casa da Música, no Palácio da Bolsa, em muitos locais, muitos concertos, mas isso é no verão. Desde há oito anos, começámos com uma gala em Nova Iorque, de apresentação do festival para o nosso público americano, e desde então cada ano enchemos uma sala nova-iorquina com muitos convidados, para dar a conhecer o festival nos Estados Unidos. Surgiu depois a ideia de irmos à capital americana - fomos pela quarta vez a Washington, atuar na residência do embaixador. No ano passado estivemos em Madrid também, para aproximar-nos do nosso público espanhol. Estivemos em Madrid, no Teatro Real, fizemos uma gala em abril. Fomos depois a Paris também, temos muito público no centro da Europa e queríamos apresentar o festival lá. Aqui na FLAD fizemos a primeira apresentação em Lisboa. Sempre quisemos apresentar o festival aqui e a décima edição era o momento ideal”.Nuno pode já dar a conhecer um pouco da edição que começa a 1 de agosto. “Serão 12 dias de atividades, 25 concertos, 13 auditórios, quatro cidades: Porto, Matosinhos, Vila do Conde e Vila Nova de Famalicão. Este ano temos o grande pianista jazz francês Baptiste Trotignon que apresenta o álbum “Brexit Music”, os seus arranjos dos grandes clássicos do pop-rock britânico. Temos também um concerto com o grande Artur Pizarro nos Paços do Concelho, pela primeira vez. Outro dos destaques é um concerto no Museu de Serralves, também pela primeira vez, com o reputado pianista de música contemporânea norte-americano Anthony De Mare, que apresenta em exclusivo e em estreia em Portugal o seu “Liaisons Project”, baseado em encomendas aos principais compositores da atualidade de arranjos da sua obra preferida da lenda do teatro musical Stephen Sondheim. Temos mais um concerto ao ar livre no Pátio do Romântico, nos jardins do Palácio de Cristal, com as artistas indie norte americanas Nicole Wakabayashi e Lilliana de los Reyes, acompanhadas pela Orquestra Sinfonietta de Braga. Por último, um regresso a Portugal novamente em exclusivo para o festival do vencedor da Medalha de Ouro do Concurso Cliburn, Alexander Kobrin, que encerrará o festival”. Mariel sublinha: “temos uma excelente programação, espero que muitas pessoas venham descobrir o Porto Pianofest”. Quem vai também descobrir o Porto Pianofest e Portugal será o pequeno Luca.