A notícia da edição em DVD do filme O Rapaz e a Garça, de Hayao Miyazaki, justifica que renovemos uma observação paradoxal, desencantada e moderadamente optimista. Assim, é verdade que o DVD deixou de ocupar o lugar de destaque que já teve no mercado do audiovisual; há mesmo muitos espectadores, porventura maioritários, que além de terem perdido qualquer relação afetiva com as salas escuras, se tornaram consumidores exclusivos das plataformas de streaming — para o melhor e para o pior, apetece dizer. Ao mesmo tempo, não é menos verdade que, pelo menos para algumas edições específicas, o DVD continua a ser uma boa alternativa — lembro o lançamento recente de títulos póstumos de Abbas Kiariostami e Jean-Luc Godard, com chancela da Midas Filmes. Miyazaki celebrou 84 anos no passado dia 5 de janeiro. Na trajetória criativa do mestre japonês da animação, O Rapaz e a Garça é tanto mais importante quanto veio romper a sua decisão de passar à reforma. Assim, depois de As Asas do Vento (2013), Miyazaki decidira distanciar-se do dia a dia dos estúdios Ghibli, de que foi um dos fundadores em 1985, ocupando-se sobretudo do respectivo museu (inaugurado em 2001, a partir de um projeto arquitetónico que ele próprio concebeu). O Rapaz e a Garça colocou um ponto final nesse exílio voluntário — lançado no Japão no verão de 2023, teve estreia nas salas portuguesas a 9 de novembro do mesmo ano, com distribuição da Outsider Films; agora, a edição em DVD está disponível, em exclusivo, na loja digital Estantarte [estantarte.net]. .Segundo alguns dos colaboradores mais próximos de Miyazaki, a sua decisão de voltar à realização com O Rapaz e a Garça não terá sido estranha ao facto de a história do protagonista — Mahito, um rapaz de Tóquio, de 11 anos de idade, que perdeu a mãe e se muda com o pai para a aldeia onde nasceu — envolver alguns ecos autobiográficos. Como pano de fundo, podemos pressentir as convulsões da Segunda Guerra Mundial, embora a matéria dramática essencial tenha as suas raízes na solidão do jovem herói, de algum modo complicada pelo facto de o pai se ir casar com a irmã da mãe de Mahito. Provavelmente, o filme de Miyazaki que mais se aproxima de O Rapaz e a Garça será A Viagem de Chihiro (2001). Ambos se centram numa criança à beira da adolescência que vai deparar com um mundo “alternativo”, de inquietante fantasia, precisamente a partir do momento em que passa a viver num novo ambiente. A garça que, literalmente, procura e atrai Mahito funciona, assim, como o motor psicológico (apetece dizer: psicanalítico...) de uma aventura insólita. Ramin Zahed, director da Animation Magazine, uma revista de Los Angeles especializada em desenhos animados, resumiu de forma sugestiva a odisseia de Mahito como uma aventura algures entre o clássico de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, e o filme Fanny e Alexandre, em que Ingmar Bergman também revisitou memórias da sua infância. O pássaro que acompanha Mahito não é, assim, um simples mensageiro de uma natureza redentora. É certo que, como sempre acontece com Miyazaki, os elementos naturais são deslumbrantes nas suas formas e cores (lembremos as florestas de A Princesa Mononoke, 1997). Mas não é menos certo que a exuberância de tudo isso nos remete para o negrume que as fábulas podem conter, desafiando os seus heróis para experiências tecidas de muitos medos, vividas na companhia de figuras monstruosas e fantasmáticas. Um estilo primitivo A produção de O Rapaz e Garça iniciou-se em 2017, visando um lançamento nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020. A longa duração de execução justificava-se, como é óbvio, pela demora inerente aos trabalhos de animação, envolvendo nada mais nada menos que 60 desenhadores; a eclosão da pandemia de covid acabou por complicar ainda mais o calendário, pelo que 2023 acabou por ser a data possível para a estreia. Com um orçamento de 55 milhões de dólares (48,5 milhões de euros ao câmbio atual), é considerado o mais caro desenho animado de sempre (em língua não inglesa). Num universo industrial e comercial dominado pela marca Disney (que, convém não esquecer, integra os estúdios Pixar), Miyazaki persiste como um primitivo que se mantém fiel a técnicas e modelos narrativos que quase ninguém aplica. Seja como for, isso não o impede de continuar a ser um criador de “mensagens” universais, como o atestam as dezenas de prémios obtidos por O Rapaz e a Garça, incluindo o Óscar de melhor longa-metragem de animação de 2023.