Se é verdade que a evolução dessa arte singular a que damos o nome de cinema possui os seus próprios fantasmas, então faz sentido dizer que há um espectro que continua a assombrar a sua história. Chama-se Guy Debord (1931-1994) e o seu poder de perturbação é tanto maior quanto ele pensou e filmou, enfim viveu, distanciando-se de todos os valores correntes das regras do pensamento e do ofício de filmar. A sua filmografia, radical e intratável, visceralmente poética, aí está como um dos grandes acontecimentos do nosso verão cinematográfico: a partir de quinta-feira, dia 28 (até 3 de setembro), no cinema Ideal, a Midas Filmes apresenta uma retrospectiva integral da sua obra. São seis títulos reunidos sob a designação ‘Guy Debord: todos os filmes’ - todos comercialmente inéditos, apenas exibidos em sessões da Cinemateca, em cópias restauradas. Escusado será sublinhar que o legado de Debord tem como núcleo A Sociedade do Espectáculo - o livro, em primeiríssimo lugar, e depois o filme. O livro, lançado em 1967 (disponível no mercado português numa tradução de Francisco Alves e Afonso Monteiro, com chancela da editora Afrontamento), é uma das referências, de uma só vez teóricas e míticas, de uma vasta conjuntura de pensamento & ação que, em termos históricos, desembocaria nas convulsões de Maio de 68, em França. Mais do que isso: o Maio francês surge como símbolo irradiante de um tempo de transformações sociais e políticas (obviamente muito diferentes entre si) em que, na lógica de Debord, também podemos incluir a contestação da guerra do Vietname nos EUA ou o 25 de Abril português. .A visão de Debord nasce de uma revolta, não apenas política, mas também ética e estética, contra a “acumulação de espectáculos” nas sociedades contemporâneas. O radicalismo de tal visão faz com que, por vezes, o seu trabalho seja “resumido” como uma derivação, mais ou menos extremada, do imaginário de esquerda da época em que surgiu o seu livro. Ora, mesmo não esquecendo que Debord está longe de ser estranho à herança crítica de Karl Marx, tal descrição tende a simplificar a ousadia, porventura incómoda, do seu pensamento. Porquê? Porque nele encontramos, não apenas uma demarcação veemente em relação à esquerda de socialistas e comunistas (entenda-se: François Mitterrand e Georges Marchais), mas também uma resistência subtil à dicotomia “esquerda/direita”. .Sem esquecer, claro, que A Sociedade do Espectáculo foi publicado durante a existência da chamada Internacional Situacionista, fundada em 1957 e dissolvida em 1972 - os seus fundadores, o próprio Debord e Asger Jorn, pintor e artista plástico dinamarquês, viriam a assinar algumas obras conjuntas. Reunindo artistas, intelectuais e políticos das mais variadas origens (incluindo a escritora francesa Michèle Bernstein, primeira mulher de Debord), a Internacional Situacionista assumiu-se como entidade crítica da evolução do capitalismo global no pós-Segunda Guerra Mundial, colhendo energia e inspiração nas vanguardas artísticas do começo do século XX, nomeadamente o Dadaísmo e o Surrealismo. .Transformar o mundo Dos seis filmes realizados por Debord, A Sociedade do Espectáculo (1973) emerge, naturalmente, como o centro do seu projeto de cinema - até porque os textos em off que acompanham as imagens provêm, todo eles, do livro. Para Debord, o cinema é sempre anti-cinema. Não se trata de procurar edificar um “objecto” cinematográfico, mas sim de questionar (e aplicar) o cinema como instrumento ligado a um desejo que tem tanto de primitivo como de marxista: “O mundo já foi filmado. Trata-se agora de o transformar.” A voz off, bem entendido, está longe de ser um banal instrumento “descritivo” daquilo que estamos a ver nas imagens. Dito de outro modo: rejeitando as convenções de algum cinema documental, Debord também não se entrega aos lugares-comuns das linguagens televisivas. As imagens de diversas convulsões sociais - com especial evidência para os confrontos entre polícias e manifestantes durante os acontecimentos de Maio de 68 - surgem, assim, em paralelo com fotografias, extractos de mensagens publicitárias e também fragmentos de vários filmes de cinema, com destaque para Johnny Guitar (1954), de Nicholas Ray. .Não por acaso, tudo isso vai sendo pontuado pela amostragem de novas formas de urbanismo, permitindo sublinhar um ponto fundamental do discurso analítico do autor. A saber: as cidades não são apenas o cenário de muitos confrontos entre dominados e dominantes, já que passaram a ser concebidas como territórios de integração, manipulação e formatação de todos os comportamentos humanos. Para Debord, o fetichismo das mercadorias (de que a publicidade é, de uma só vez, a montra e o enquadramento ideológico) implica, assim, a mercantilização de todas as atitudes humanas, incluindo a insatisfação - há mesmo a sugestão de que as novas formas musicais (rock’n’roll, Johnny Halliday, etc.) existem como sistema de integração e controle da insatisfação juvenil. No limite, a insatisfação integra e potencia o espectáculo: “À aceitação beata daquilo que existe pode também juntar-se, como uma mesma coisa, a revolta puramente espectacular.” Expressão universal desta normalização coletiva? O turismo. Tal como no filme Pedro, o Louco, de Jean-Luc Godard, lançado em 1965 (portanto dois anos antes do aparecimento do livro A Sociedade do Espectáculo), os turistas são encarados como os “escravos modernos”. Daí a proliferação de formas de circulação dos cidadãos, desfrutando uma pobre fruição privada do espectáculo coletivo: “Subproduto da circulação das mercadorias, a circulação humana considerada como um consumo - o turismo -, resume-se fundamentalmente ao passatempo de ir ver aquilo que se tornou banal.” O que é a felicidade? Como seria de esperar, em 1973, o lançamento do filme A Sociedade do Espectáculo suscitou reações muito variadas, do entusiasmo febril até ao mais violento menosprezo. Debord não gostou de nenhuma delas, a ponto de, dois anos mais tarde, ter realizado uma curta-metragem cujo título não podia ser mais eloquente: “Refutação de Todos os Juízos, Tanto Elogiosos como Hostis, Até Aqui Pronunciados sobre o filme “A Sociedade do Espectáculo”. Com uma curiosidade a reter: aí encontramos algumas imagens das lutas do 25 de Abril, e até um breve registo da tomada de posse de um dos governos provisórios de Vasco Gonçalves. Para Debord, a situação portuguesa surge como pretexto para uma análise panfletária, no mínimo precipitada, de tal modo dispensa a simples consideração das raízes sociais e políticas do 25 de Abril: “Há quem compreenda, e quem não compreenda, que a luta de classes em Portugal foi, em primeiro lugar, e principalmente, dominada pelo confronto direto entre os operários revolucionários, organizados em assembleias autónomas, e a burocracia estalinista, reforçada por alguns generais em debandada.” Seja como for, a tenacidade com que Debord procura “forçar” a compreensão da realidade para lá das imagens e mensagens dominadoras do espectáculo decorre de uma energia envolvente, presente desde os seus três filmes anteriores. O primeiro, Urros a Favor de Sade (1952) pode mesmo servir de emblema da contradição que não mais o irá abandonar: fazer cinema para destruir o cinema, denunciando a sua cumplicidade nas estratégias manipuladoras do espectáculo. Com evidente ironia: “O cinema está morto, já não pode haver filme - passemos, se quiserem, ao debate.” E também com uma intransigência total, de mera agressão formal, face às possíveis expectativas do espectador, já que os seus 64 minutos alternam o ecrã branco (com vozes off) e o ecrã negro (em silêncio). Cronologicamente, seguem-se duas curtas-metragens (ambas de 20 minutos) que, de alguma maneira, vão sistematizando as ideias que se iriam materializar em A Sociedade do Espectáculo. Os respectivos títulos refletem a urgência de uma reflexão crítica sobre a organização social do tempo e a comunicação (ou incomunicação) em que os humanos, conquistados pelas ilusões do espectáculo, vivem como fantasmas tristemente felizes: Sobre a Passagem de Algumas Pessoas Através de uma Breve Unidade de Tempo (1959) e Crítica da Separação (1961). Aliás, como é dito na primeira dessas curtas, a ambição do seu anti-cinema envolve o projeto radical de elaborar uma “crítica global da noção de felicidade.” .Tudo isso desemboca no filme final, intitulado por uma frase latina em forma de palíndromo (lê-se de igual modo em ambos os sentidos): In girum imus nocte et consumimur igni (“Movemo-nos na noite sem saída e somos devorados pelo fogo”). Com data de 1978 e 100 minutos de duração, é o mais longo dos seus filmes e também o mais autobiográfico, misturando o reiterado radicalismo das suas ideias com um desencanto, também ele radical: “Morreu-nos a mocidade.” Não ocultando o seu “naufrágio”, Debord pergunta-se mesmo se poderá aplicar à sua história as palavras de um poeta chinês, da dinastia Tang, citando um viajante de quem se despede. Diz o viajante: “Não fui bem sucedido nos negócios do mundo. / Volto aos montes Nan-Chan em busca de repouso.” Na ânsia desse repouso, Debord viveu como um poeta angustiado pelas mentiras do espectáculo que nos rodeia - suicidou-se no dia 30 de novembro de 1994, contava 62 anos. .'Wednesday’ e outras pérolas para um verão burtoniano.Drácula continua a estar na moda