Jean-Paul Belmondo em Pedro, o Louco (1965): quando o romantismo morreu..Se é verdade que o amor do cinema só existe através de um militante conhecimento da sua história, então não é menos verdade que, em anos recentes, no mercado português, um capítulo importante de celebração desse amor resulta do trabalho de distribuidores e exibidores da chamada área independente. Eis um novo e belíssimo exemplo de tal trabalho: a partir de quinta-feira, dia 22, a Leopardo Filmes, vai lançar nada mais nada menos que 11 filmes de Jean-Luc Godard (1930-2022) em cópias digitais restauradas..A selecção de títulos privilegia o período da Nova Vaga francesa, a começar por O Acossado (1960), um dos títulos fundadores do movimento, a par de Os 400 Golpes (1959), de François Truffaut, e Hiroshima, Meu Amor (1959), de Alain Resnais, quando a “política dos autores” se exprimia nas páginas dos Cahiers du Cinéma. O Desprezo (1963) e Pedro, o Louco (1965), por certo os mais célebres desse período, estão também incluídos, juntamente com Uma Mulher É uma Mulher (1961), O Soldado das Sombras (1963), Os Carabineiros (1963), Alphaville (1965) e Made in USA (1966). Saltando no tempo, será ainda possível ver ou rever três filmes que ilustram exemplarmente os caminhos cruzados da multifacetada actividade pós-Maio de 68 de Godard: Nome: Carmen (1983), Detective (1985), este nunca estreado no circuito comercial português, e Valha-me Deus (1993).O ciclo apresenta-se com o sugestivo título “For ever Godard” (à letra: “Para sempre Godard”), designação “roubada” ao seu For Ever Mozart (1996), um filme que se organizava como uma colagem de histórias e personagens que trabalham em cinema, perdidas num mundo em que as marcas da guerra (Sarajevo é uma cidade que surge como verdadeira “personagem”) desafiam o método e as angústias de qualquer narrativa..Os 11 filmes estarão em exibição em salas de todo o país, nomeadamente as que são citadas na informação oficial da distribuidora: Nimas (Lisboa), Teatro Campo Alegre (Porto), Charlot (Setúbal), Teatro Académico de Gil Vicente (Coimbra), Theatro Circo (Braga) e Centro de Artes e Espectáculos (Figueira da Foz)..Johnny Hallyday em Detective (1985): rock'n'roll, aliás, cinema..Walt Disney com sangue.Há um mito negativo que tende a banalizar o labor de Godard durante a Nova Vaga, descrevendo-o como uma trajectória experimental em que o jogo das formas dispensa, e até resiste, a qualquer possibilidade de relação com o mundo à sua (nossa) volta. Contrariando o simplismo dessa tese, vale a pena recordar as singularidades temáticas e simbólicas que encontramos em tal trajectória.Assim, podemos dizer que a longa-metragem de estreia, O Acossado, é um “filme sobre filmes”, dos mais belos, e também mais radicais, a pontuar as grandes viragens da história do cinema. Jean-Paul Belmondo apresenta-se mesmo como um herdeiro directo, desencantado e ambíguo das ambiências do cinema “noir” de Hollywood, sendo Humphrey Bogart o seu modelo inspirador.O certo é que nada disso decorre de uma atitude de mero formalismo: a relação de Belmondo com a personagem de Jean Seberg pode ser vista como uma reinvenção da escrita melodramática do cinema clássico, mas acontece que as situações que vivem — a começar pelo passeio nos Campos Elíseos, enquanto ela vende o New York Herald Tribune — ilustram já uma preocupação que o universo “godardiano” nunca abandonará. A saber: a metódica observação das transformações das cidades, processo que tem o seu cume crítico na inventariação dos efeitos sociais, familiares e sexuais do crescimento urbano de Paris, observado em 1967 no sublime Duas ou Três Coisas sobre Ela (sendo “ela”, como é esclarecido num cartão logo no começo do filme, a “região parisiense”)..Filmes como O Soldado das Sombras e Made in USA integram mesmo referências muito concretas à actualidade política. No primeiro (Le Petit Soldat no original), as alusões à guerra da Argélia levaram à sua interdição pela autoridades francesas; foi rodado logo após O Acossado, mas a estreia só ocorreria em 1963, já depois do lançamento de Uma Mulher É uma Mulher, uma homenagem plena de ironia ao género musical, e Viver a sua Vida (1962), outra crónica parisiense construída a partir da personagem de uma prostituta. Por sua vez, Made in USA reflecte um profundo cepticismo face à decomposição dos valores políticos e jornalísticos, sendo filmado como uma quase farsa que faz lembrar certos elementos visuais da animação e da banda desenhada — nas palavras do próprio Godard, trata-se de um “Walt Disney com sangue”, ou seja, um “filme político”.A dimensão visceralmente social que há no cinema de Godard não exclui alguns magníficos “desvios” por géneros que denunciam o seu artifício narrativo. Os Carabineiros e Alphaville poderão mesmo ser descritos como ficções distópicas sobre mundos imaginários: no primeiro, encenando uma guerra em que a repressão das mulheres e o menosprezo da arte são expressão da mesma violência; no segundo, recuperando Lemmy Caution, o detective criado pelo escritor Peter Cheyney, e também Eddie Constantine, na altura o seu intérprete no cinema, desta vez envolvido numa aventura surreal num país ditatorial em que foram proibidos conceitos como o “amor” ou a “poesia”..Viver a sua vida.Vale a pena lembrar que o pós-Maio de 68 foi vivido por Godard como um tempo de muitas e drásticas interrogações, aliás bem expressas a partir de Tudo Vai Bem (1972), exercício de introspecção emocional e política com o par Jane Fonda/Yves Montand. Sem esquecer que a tais interrogações se somou, a partir de 1975, com Número Dois, o uso de câmaras e recursos de produção vindos do espaço televisivo.A partir de Salve-se quem Puder (1980), Godard passa a viver na Suíça, próximo de Lausanne (onde o seu amigo Freddy Buache dirigia a Cinemateca). Independentemente da integração de cenários parisienses, Nome: Carmen e Detective são produtos desse período de “reclusão” artística que se manteria até ao final da vida.A proposta de Nome: Carmen é bem reveladora de uma dinâmica de pensamento que pontua muitos momentos fulcrais da filmografia de Godard, levando-o a interessar-se pelas formas de comportamento das personagens mais jovens, por vezes até mesmo das crianças — recordemos o tratamento do território infantil na notável série televisiva, rodada em video, que é France Tour Détour Deux Enfants (1980). A Carmen interpretada pela holandesa Maruschka Detmers (uma revelação absoluta, então com 20 anos) é alguém que se envolve numa intriga de “polícias & ladrões” que Godard encena como uma reconversão trágica da Carmen, de Bizet — por desconcertante e fascinante contraste, na música do filme o mais importante são os derradeiros quartetos de cordas de Beethoven… Quanto a Detective e Valha-me Deus, ambos envolvem a decomposição de todo um imaginário clássico do heroísmo e, sobretudo, dos heróis masculinos que, obviamente não por acaso, surgem interpretados por figuras míticas da França “profunda”: Johnny Hallyday e Gérard Depardieu, são convocados para viver, respectivamente, aventuras pontuadas por uma mafia implacável e para questionar o primitivo desejo dos deuses experimentarem as emoções dos humanos..A lição de Picasso.O que nos reconduz ao facto de as personagens de Godard, mesmo quando tendem para um qualquer modelo abstracto, espelharem a ânsia muito humana de “viver a sua vida” para lá das regras impostas por essa sociedade de consumo que, afinal, se consolidou no mesmo período em que nasceu a Nova Vaga. Os dois títulos mais conhecidos deste ciclo — O Desprezo e Pedro, o Louco — são fábulas modernas sobre essa perdição muito humana que um dos mestres de Godard, Bertolt Brecht, resumiu num célebre axioma: “Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver”.O Desprezo ocupa um lugar muito especial na galeria de obras sobre o mundo do próprio cinema. Tendo como base o romance homónimo de Alberto Moravia, nele encontramos duas estrelas bem diferentes, unidas pelo mesmo olhar cinéfilo: Brigitte Bardot, na altura uma das actrizes mais populares muito para lá das fronteiras francesas, e Fritz Lang, o mestre alemão que Godard convidou para interpretar o papel de… Fritz Lang. Nos cenários paradisíacos da ilha italiana de Capri, seguimos a odisseia de rodagem de um filme (aliás, o filme dentro do filme é uma adaptação da Odisseia, de Homero), deparando com a vertigem propriamente cinéfila da vida filmada que se transfigura em vida vivida. Ou como é dito na frase de André Bazin, lendário mentor dos autores da Nova Vaga, que abre O Desprezo: “O cinema substitui ao nosso olhar um mundo que se adequa aos nossos desejos.”.Enfim, Pedro, o Louco emerge como o paradoxo absoluto. Essa outra odisseia que é a viagem de Anna Karina e Jean-Paul Belmondo através da França apresenta-se como uma aventura do mais puro romantismo que, a pouco e pouco, se vai transfigurando na agonia irreversível de qualquer ilusão romântica. Mais do que isso: a ternura mitológica do par já não é suficiente para continuar (a filmar), uma vez que, como disse o próprio Godard, vamos perdendo a capacidade de colocar as questões que realmente importam. Por altura do lançamento do filme, numa entrevista aos Cahiers du Cinéma (nº 171, outubro 1965), Godard evocou a lição de Picasso, aliás várias vezes citado em Pedro, o Louco: “Colocar problemas não é uma atitude crítica mas uma função natural. De um automobilista que coloca problemas de circulação, dizemos apenas que ele se desloca — de Picasso, dizemos que ele pinta.”