Giuliano da Empoli, o sucesso de um injustiçado do Goncourt
Escritor viu O Mago do Kremlin perder para Viver Depressa de Brigitte Giraud após 14 rondas de votação. Isso não impediu que vendas disparassem, com ajuda da guerra na Ucrânia.
O ensaísta Giuliano da Empoli que vai poder ouvir falar sobre "O Fim da Paz? - A Rússia, Último Império Colonial" quem quarta-feira em Lisboa for à Gulbenkian para a primeira das Novas Conferências do Casino tornou-se um nome conhecido dos leitores portugueses quando a Gradiva publicou O Mago do Kremlin. Romance quase documental sobre como surgiu a Rússia de Vladimir Putin, Le Mage du Kremlin beneficiou em notoriedade com a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 e por muito pouco não ganhou o Goncourt, como se ficou a saber por uma inconfidência vinda do júri. Ainda ontem, em entrevista no DN, Brigitte Giraud, vencedora do prestigiado prémio com Vivre Vite (Viver Depressa, Planeta) comentava o insólito da situação: "É normal, é lógico, é democrático e é feliz que num júri haja gostos diferentes, escolhas diferentes, entusiasmos diferentes. Porque há tipos diferentes de literatura. O que foi especial foi um membro do júri ter vindo dizer de forma oficial e mediática quais os segredos das deliberações. Não se faz, não é suposto sabermos. Depois, os dois livros são muito diferentes. Um é muito mais pessoal. Mesmo se não o vejo como sendo íntimo, como o descreveram".
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O tema de Viver Depressa é a morte num acidente de moto, há mais de 20 anos, do marido da autora. E permitiu a Giraud impor-se a Da Empoli ao fim de 14 rondas de votação, finalmente com o presidente do Prémio Goncourt a desempatar. Mesmo derrotado, o livro do italo-suíço tem feito caminho e de grande sucesso, com vendas bem superiores a Viver Depressa.

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Nascido em França, educado tanto em Roma (La Sapienza) como em Paris (Institut d"Études Politiques), antigo conselheiro de governantes italianos como o primeiro-ministro Matteo Renzi, Da Empoli soube elegantemente deixar na dúvida o que era e não era ficção em O Mago do Kremlin. É um livro que prende o leitor, que vai ficando a perceber um pouco melhor como esta Rússia de Putin é muito uma reação aos anos Boris Ieltsin, a primeira década pós-soviética, livre mas caótica, democrática mas empobrecida. É muito provável que o autor fale disso daqui a dois dias em Lisboa, mesmo que entretanto nas livrarias esteja em destaque uma outra obra sua, Os Engenheiros do Caos, tradução de um livro de 2019 republicado este ano em França com um posfácio que já fala da Guerra na Ucrânia, mesmo que o tema sejam os movimentos e os políticos populistas no Ocidente, do Cinco Estrelas italiano ao americano Donald Trump, e aqueles que os aconselham/inventam, de Gianroberto Casaleggio a Steve Bannon ou de Arthur J. Finkelstein a Dominic Cummings.
Desta vez, Da Empoli não recorre à ficção, mesmo que alguns dos episódios que conta sejam belos pontos de partida para eventuais romances. É sim um misto de reportagem de investigação com reflexão filosófica, pontuada aqui e além por uma erudição que o italo-suíço - que escreve em francês- tem e usa sem parecer pretensioso.
Conclui Da Empoli - analisando desde o fenómeno Beppe Grillo em Itália à campanha vitoriosa de Trump em 2016, passando pela regresso de Viktor Orbán ao poder na Hungria e o referendo sobre a saída do Reino Unido da UE - que há uma espécie de receita usada por todos os engenheiros do caos: jogar com a cólera das pessoas, denegrir os rivais, usar as redes sociais em vez dos media tradicionais, trabalhar o máximo possível com o Big Data, aproveitando uma quantidade infinita de dados que permite conhecer e manipular o eleitorado. Como sublinha o autor, "até há pouco tempo, ter um espírito científico em política representava uma desvantagem. Havia de facto as sondagens, mas estas só permitiam, na melhor das hipóteses, uma análise grosseira das orientações da opinião pública tomada no seu conjunto. Cada tentativa de se chegar a uma segmentação mais precisa era necessariamente onerosa e produzia, na melhor das hipóteses, resultados aleatórios. No final, em política, aquilo que contava era o instinto, a capacidade de farejar o ar do tempo e de escolher o bom momento que caracteriza o animal político desde Tucídides, para quem o líder é aquele que é capaz de "prever entre as diferentes coisas iminentes aquela que terá efectivamente lugar". Num tal contexto, o menor projeto para pôr em prática uma administração "científica" da política poderá parecer ridículo, fruto das angústias de espíritos pouco habituados a confrontar-se com o risco e com a incerteza, dois fatores que têm caracterizado desde sempre a experiência política. Hoje em dia, pela primeira vez, esta situação inverteu-se".

Da Empoli tem razões para esperar ser escutado com muita atenção em Portugal - seja por este novo livro, seja sobretudo pelo anterior, em que ligava a guerra na Chechénia à afirmação de Putin como homem forte. É que na primeira edição do Choix Goncourt du Portugal, uma avaliação das obras em competição feita por estudantes nacionais que já acontece em três dezenas de países, o seu O Mago do Kremlin impôs-se a Viver Depressa. O franco-marroquino Tahar ben Jelloun, ele próprio já vencedor do Goncourt e membro do júri, esteve na embaixada francesa em Lisboa para apadrinhar o evento e terá ficado satisfeito. Nunca escondeu que por ele o Concourt teria sido para o livro que, misturando ficção e realidade, fala de Vadim Baranov que passa de realizador de televisão a uma espécie de Rasputine do século XXI. "Este magnífico romance ajuda-nos a compreender (um pouco) aquilo que se passa na cabeça de um czar", afirmou, numa entrevista dada ainda antes de se conhecer os finalistas Goncourt.
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