Uma capa totalmente cor-de-rosa, um interruptor com design sugestivo em posição fálica de “luz acesa” e a palavra Desejo plantada logo por baixo, ao centro. É com esta face que o livro agora lançado por cá pela Albatroz capta a atenção dos leitores. Isso e o nome acima do título: Gillian Anderson. A atriz que entrou nas nossas vidas pela porta da série Ficheiros Secretos, como a agente ruiva Dana Scully, e que recentemente interpretou uma terapeuta sexual noutra ficção televisiva, Sex Education, decidiu aos 56 anos formalizar a sua curiosidade em relação ao que “as mulheres desejam” através de uma compilação de cartas confessionais que dão largas ao universo da fantasia carnal. Como é que isto se processou? Segundo explica na introdução, Anderson lançou o desafio às mulheres de todas as nacionalidades – no fundo, o desafio de desbloquearem os seus “ficheiros secretos” da imaginação sexual – e os editores da atriz criaram um portal para a submissão das epístolas. Ela limitou-se a esperar pelos manuscritos... e o resultado foram tantas cartas que não houve mãos a medir. Porém, uma seleção tinha de ser feita..Tal como o interruptor na capa insinua, a ideia aqui é acender a luz do quarto secreto de cada mulher, ou pessoa genderqueer (cuja identidade de género não se enquadra nas convencionais distinções binárias), para explorar um território virtual e perceber até que ponto ele pode contribuir para a libertação feminina. Uma ideia que deve muito a outra obra de antologia de 1973, o clássico de culto My Secret Garden: Women’s Sexual Fantasies, de Nancy Friday, e que ensaia nos nossos dias uma espécie de partilha comunitária baseada numa corrente de desinibição: a letra no papel tem essa propriedade catártica. Além disso, o controlo da narrativa está do lado de quem se põe a fantasiar..Enquanto efeito terapêutico, o livro confronta-nos com o nosso próprio embaraço íntimo e a possibilidade de uma simples página, escrita por uma anónima do outro lado do mundo, poder bater certo com as fantasias que guardamos na gaveta da vergonha – aquelas que não é de bom tom expressar nem à pessoa mais próxima. Mas talvez a terapia maior seja ainda a diversão do exercício em si, o percorrer da enorme variedade impudica de desejos (esse é, aliás, um dos critérios da curadoria de Anderson), que tanto podem provocar um “Uau!” no pensamento como uma gargalhada sonora de incredulidade..Brincar (e brindar) à falta de pudor.Lembramo-nos, a propósito desta aventura contra os tabus, de uma cena hilariante da terceira temporada de The Great (série sobre o reinado de Catarina, a Grande, em tom de paródia) onde a mãe da rainha morre a fazer sexo com o genro, caindo do parapeito da janela do palácio que servia a luxúria daquele momento... Quem é que interpreta essa mãe sem escrúpulos? Gillian Anderson, pois claro. E consta que a atriz só aceitou o pequeno e delicioso papel precisamente depois de passar os olhos pela parte do guião que descreve a originalidade desta morte..DesejoGillian AndersonEdição Albatroz396 páginas.Nenhum espanto, então, ao sabermos que algures entre as páginas de Desejo está também uma carta, ou cartas, escrita(s) por Anderson, ela mesma dona e senhora dos seus caprichos ardentes, que quis experimentar o outro lado deste confessionário, de forma igualmente anónima. Onde assume a primeira pessoa do singular (para além do referido texto de introdução) é na abertura dos capítulos que separam a natureza das fantasias; algumas das quais com caráter bastante nocivo, mas sempre reveladoras de um qualquer efeito libertador não vigiado pela polícia da moralidade..Para Gillian, que ainda há pouco tempo fundou uma marca de bebidas naturais com o nome G Spot (“Ponto G”), o importante era manter as coisas no limite do aceitável. “Rejeitar mensagens que se aproximavam da ilegalidade, da bestialidade ou do incesto foi a decisão certa. Eu queria um espaço seguro para as mulheres compartilharem e lerem sem se sentirem obrigadas a desconfiar, ou a ter medo do que vão encontrar página a página”, disse em entrevista à BBC. Isto sem deixar de admitir que há em Want (título original) um inevitável sentido de risco; e por isso algumas fantasias podem ferir sensibilidades....No meio de uma sucessão de lugares-comuns eróticos adaptados a contextos diferentes pelo devaneio de cada participante (o mais próximo que temos de uma conterrânea é uma luso-americana), há pedaços de prosa riquíssimos, mini sessões de autoanálise, autênticos contos com princípio meio e fim, e até gente muito prática que consegue pôr tudo numa linha: “Tenho sonhos lúcidos. Todas as noites sonho que faço sexo com o ator Pedro Pascal”. Pronto, digamos que é mais do que suficiente.