Gary Hart, o candidato sem vida privada
Em tempos de Donald Trump, chegar um filme com a história do candidato democrata Gary Hart (eleições de 1988) torna-se num pedido de reflexão. A sua chacina mediática terá sido a primeira vez que a imprensa americana derrotou um candidato à presidência pelo efeito tabloide. Hoje, numa América com sentidos morais diferentes, um caso de adultério teria um outro impacto. É como se "as virgens ofendidas" de 1987 tivessem sido esquecidas em vão.
A bravura liberal de um Gary Hart é utopia no circo de feras do atual contexto e o cineasta canadiano Jason Reitman percebe isso melhor do que ninguém. O resultado é um filme à Robert Altman: livre e em modo de cruzamento de aparatos: por um lado o fascínio do circo de uma campanha, do outro a profundidade de um conto moral que analisa a solenidade do dever do jornalista.
Em O Candidato Principal (chegou o ano passado ao Festival de Toronto como veículo para a campanha do prémios, nomeadamente com peso na interpretação de Hugh Jackman) a ideia não é mostrar de forma ilustrada e factual os factos que levaram à desistência do candidato Hart nas primárias de 1987, mas sim percorrer uma ideia de contexto de época.
Gary Hart estava à frente das sondagens como principal candidato à Presidência pelos democratas e era bem possível que pudesse competir taco-a-taco com George Bush, o candidato republicano. No pique da sua popularidade (aqui diz-se que o cabelo e a sua jovialidade estavam a conquistar os eleitores), um jornalista do Miami Herald suspeita de uma relação extraconjugal e monta uma vigilância à porta de sua casa, onde se apanha a sair uma jovem da Florida, Donna Rice.
Mesmo sem provas da traição à sua mulher, Gary Hart acaba por desistir da corrida alegando não aguentar o frenesim mediático que se seguiu após o artigo do Miami Herald. O filme de Jason Reitman defende com unhas e dentes que o rumor e o efeito tabloide foram preponderantes para assassinar politicamente um homem liberal e com ideias inovadoras de política externa e interna. Reitman não tem medo de apostar em discursos do candidato e é sempre evasivo no tratamento do caso de adultério.
De alguma forma, The Front Runner passou ao lado de uma carreira comercial mais vistosa por não ser um filme sensacionalista, o que não deixa de ser irónico pois o seu repúdio é precisamente contra a exposição do privado. Em dias da euforia do movimento #metoo talvez não seja o filme certo na altura certa, embora seja complicado embirrar com o debate ético que o argumento propõe.
Trata-se de um inédito que estranhamente não foi às salas. Numa altura em que continuam a estrear cinema de formulário dispensável, importa sobretudo lamentar que um objeto como estes não possa ter chegado às nossas salas, mesmo quando às vezes sinta-se que falta a Reitman a espessura de um Spielberg em The Post ou a de um Pakula em Os Homens do Presidente. Ainda assim, o filme pertence todo a Hugh Jackman, ator que se transforma literalmente num político que engole a própria noção de pecado.