Numa curta documental estreada em 2021, o cantor e compositor Gil do Carmo resumiu Arroios numa frase: ‘"Do Martim Moniz ao Areeiro, cabe o mundo inteiro". É nessa freguesia diversa e em constante transformação que, este ano, o Festival Todos se realiza pela segunda vez consecutiva.Mais do que um evento focado na programação cultural, com cartaz de espetáculos de circo, teatro, música, cinema ou gastronomia, o projeto nasceu há 17 anos como um exercício de convivência entre os que habitam a cidade.“A missão do Todos é muito clara: criar momentos em que pessoas de diferentes culturas que habitam e trabalham em Lisboa possam cruzar-se com a maior proximidade possível com os lisboetas mais antigos, e vice-versa”, explica Miguel Abreu, diretor do festival e responsável pela Academia de Produtores Culturais, em entrevista ao DN. A frase resume um princípio que acompanha o festival desde a primeira edição: não se trata apenas de programar eventos artísticos, mas de trabalhar o tecido social da cidade. Criado em 2009 a partir de uma "encomenda" da Câmara Municipal de Lisboa, o festival surgiu no quadro de uma estratégia europeia que pretendia avançar naquilo que a própria UE reconhecia como um falhanço: a multiculturalidade.“A Europa já demonstrou que a multiculturalidade não deu certo, porque criou guetos entre imigrantes, afastou as pessoas em vez de as aproximar. Em 2008, o Conselho da Europa começou com esta estratégia da interculturalidade, para que pessoas de diferentes culturas pudessem conviver através da interação pessoal. O Todos, portanto, é um festival a serviço da interculturalidade”, ressalta Abreu. Desde a primeira edição, o festival já passou por bairros como Mouraria, Graça, Campo de Santana, Santa Clara ou Ameixoeira. A cada ciclo de três anos, muda de território, numa lógica de trabalho de proximidade. A escolha não é aleatória: cada zona da cidade traz consigo comunidades diferentes, tensões próprias e formas de interação particulares. “A interação e reflexão faz-se através da cultura: de oficinas, encontros, visitas guiadas e também através do olhar dos artistas. Uns chamam a atenção para o preconceito e a discriminação, outros pedem mais disponibilidade para a contemplação ou a curiosidade”, acrescenta o diretor..Em 2025, o festival cumpre o segundo ano em Arroios, freguesia onde a diversidade é marca identitária. A dimensão da comunidade brasileira, a presença de imigrantes do subcontinente indiano, a chegada de chineses e compõem um território dinâmico, mas também permeado por preconceitos. A estas comunidades se acrescem ainda os nómadas digitais, cada vez mais presentes no bairro. “Estamos focados nas comunidades brasileiras e também do Indostão — Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh - além da comunidade chinesa, dos nómadas digitais, além, claro, dos lisboetas tradicionais, mais idosos e também mais novos”, enumera Abreu.A forma como essas populações convivem entre si e com os portugueses locais, diz o diretor, está no centro da reflexão. O festival não procura esconder os conflitos; pelo contrário, expõe as tensões como parte inevitável do processo. “Nós não somos um festival de belezas. Procuramos escavar o que possam ser conflitos e tensões, porque acreditamos que é daí que surgem interações mais ricas. Não é para fazer o bonitinho. É para procurar a poética do conflito, a poética da ruína, porque em todo lado há riqueza, mesmo que não a estejamos a ver”, assinala. Programa multidisciplinarA programação deste ano traduz o espírito explicado pelo diretor do festival. Do teatro à música, passando por visitas guiadas e oficinas, o cartaz promete mistura linguagens artísticas e experiências do quotidiano entre os dias 11 e 14 de setembro. Entre os destaques está a peça “Viemos Roubar os Vossos Maridos”, criada pela encenadora Maria Giulia Pinheiro, põe em cena atrizes brasileiras a viver em Lisboa para abordar preconceitos históricos em torno das mulheres imigrantes. .A presença da atriz Lucélia Santos, que falará sobre a Amazónia é outro momento de destaque do evento. Também se destacam concertos de grupos chineses residentes em Lisboa, workshops de costura com refugiados e espetáculos de circo acessíveis a todas as idades e línguas - confira a programação completa e espaços do festival aqui.Já no dia 14 de setembro, a Marcha do Todos volta a ocupar as ruas de Arroios, juntando vizinhos, artistas profissionais e amadores num desfile comunitário. Para Miguel Abreu, é nesses encontros de proximidade que a essência do festival se cumpre: “Às vezes nascem projetos artísticos mistos, restaurantes mistos, empregos. Depois já não importa nada de onde vêm ou de que língua falam. Os preconceitos desaparecem na hora.”.Mais de uma década e meia depois da primeira edição, Miguel Abreu fala com a segurança de quem já testou diferentes metodologias em bairros de Lisboa. O Todos, diz, tornou-se um “laboratório permanente”, e os resultados acumulados ao longo de 17 anos dão-lhe a certeza de que iniciativas culturais de proximidade podem transformar o espaço público.Na sua leitura, é esse trabalho que ajuda a afastar aspetos negativos dos diferentes bairros por onde o festival deixa sua marca, tais como a criminalidade, a redução do tráfico de droga e a criação de um ambiente de maior confiança entre vizinhos. Abreu dá o exemplo do Intendente como caso paradigmático. De acordo com o diretor, quando o festival ali se instalou, em 2009, a zona era dominada por redes de prostituição e de droga. A estratégia passou por envolver todos na organização do evento, dos comerciantes aos traficantes, num processo de convivência cultural. O resultado foi inesperado: durante os anos em que o Todos ali atuou, o bairro viveu um período de pacificação e convívio comunitário. Passados 17 anos da encomenda da Câmara, o contexto político atual deixa dúvidas em Abreu. Se por um lado a pertinência do Todos parece cada vez maior, num contexto europeu marcado por novas barreiras à imigração e por discursos securitários em ascensão, por outro o futuro permanece incerto. O diretor reconhece que não sabe se o festival continuará em 2026, porque as políticas públicas “já criam dúvidas sobre se querem, e como querem, um festival destes”.A crítica não se restringe ao nível europeu, mas também na atual gestão da Câmara de Lisboa, que surge no discurso de Abreu como "distante". Na sua perspetiva, o trabalho do Todos deveria inspirar a criação de múltiplos núcleos de proximidade espalhados pela cidade, e não ser tratado como uma exceção. “Não devia haver um Todos, mas uns 15 ou 20 Todos, com outros nomes, a trabalhar estas questões”, lamenta Abreu, sem esconder desconforto com a forma como a política cultural se relaciona com a imigração, num momento em que Lisboa se torna cada vez mais diversa..Aliás, é precisamente essa diversidade que, para Abreu, define o futuro da capital. Voltando ao início da conversa e retomando os conceitos da multi e interculturalidade, o diretor do festival acredita que Lisboa será inevitavelmente cada vez mais multicultural: uma realidade que faz com que apenas as relações interculturais possam ser úteis para evitar guetos, exclusão social e preconceito.“Se é um facto [que Lisboa é assim], vamos criar o maior número possível de espaços de encontro, de conversa e de convívio, e trabalhar para a paz e não para a vitimização”, defende o programador, advertindo que a ausência dessa estratégia apenas fortalece redes ilícitas que se aproveitam da marginalização dos imigrantes.É portanto neste cruzamento entre fragilidade e resistência que o Todos quer manter continuar a distinguir-se, sendo mais do que um cartaz de espetáculos, mas também uma ferramenta rara de convivência em território urbano. Uma peculiaridade que, insiste Abreu, não consegue ver noutros projetos, seja em Portugal ou mesmo em qualquer outra capital europeia.“Este é um projeto em que os espetáculos resultam de um trabalho de grande proximidade, algo raro ou praticamente inexistente nos núcleos centrais de grandes cidades da Europa. Mais do que festas, é a convivialidade do quotidiano diverso que o nosso trabalho desenvolve: é isso que diferencia o Todos”, finaliza.nuno.tibirica@dn.pt.Criolo: “Espero que um dia imigrante seja apenas o adjetivo de alguém de outro território, não alguém menor” .Artistas brasileiros nos festivais de verão: uma combinação "que tem tudo a ver"