Festival de Cannes: Muito talento… uma só Palma de Ouro
Depois do visionamento de L’Amour Ouf, do francês Gilles Lellouche, na competição de Cannes, houve espectadores a comentar, mais do que o filme (um convencional drama de gangs juvenis), a sua inclusão entre os que concorrem à Palma de Ouro. Face a alguns títulos das secções paralelas, porque é que o filme não foi incluído, por exemplo, na zona de antestreias? Entre as alternativas, destaco a descoberta, na secção Un Certain Regard, do drama vietnamita Viet and Nam, assinado por Trung Minh Quy.
Parece difícil que um caso de radical depuração narrativa como é Oh Canada, de Paul Schrader, venha a integrar as escolhas do júri - será uma questão secundária, mas não posso deixar de sublinhar que foi, para mim, um dos momentos maiores de Cannes 2024. Resta saber se os clichés feministas com que alguma imprensa francesa quis rotular o júri presidido por Greta Gerwig pesarão nas respetivas decisões. Acredito que não, quanto mais não seja porque, mesmo nos momentos menores da sua filmografia (em que incluo Barbie), Gerwig tem sabido distanciar-se de qualquer rótulo maniqueísta para consumo mediático.
Paradoxalmente ou não, entre os candidatos à Palma de Ouro não faltaram alguns magníficos retratos de mulheres, de invulgar beleza e complexidade. Penso na personagem encarnada por Mikey Madison, em Anora, do americano Sean Baker, na revelação de Malou Khebizi em Diamant Brut, da francesa Agathe Riedinger, e sobretudo na delicada presença de Kani Kusruti em All We Imagine as Light, da indiana Payal Kapadia, por certo um dos filmes mais notáveis e subtis desta edição do festival. Vale a pena lembrar que Kapadia foi descoberta em Cannes 2021, com A Night of Knowing Nothing/Noite Incerta, premiado com L’Oeil d’Or (melhor documentário).
Poderemos, então, perguntar que acontecerá aos que ousaram desafiar as lógicas narrativas mais ou menos tradicionais? Nessa zona incluirei, obviamente, The Shrouds, com David Cronenberg a continuar a experimentar os limites das narrativas humanistas clássicas, e sobretudo o apocalíptico Megalopolis, de Francis Ford Coppola. Aliás, da conferência de imprensa de Cannes até à sua conta de Instagram, Coppola não tem desistido de perguntar: como poderá ser o cinema do futuro?
Se o júri quiser celebrar alguma ideia de futuro, Coppola é o candidato óbvio à Palma de Ouro. Ainda assim, deverá prevalecer um outro tipo de relação com o presente, com natural evidência para filmes que refletem componentes e convulsões do mundo agitado em que estamos a viver. Nesta perspetiva, direi apenas que a composição da figura de Donald Trump, nos seus tempos de empresário sedento de poder, poderá muito bem valer o prémio de interpretação masculina ao talentoso Sebastian Stan - sem esquecer que os meus dotes de adivinhação são habitualmente desastrosos.
JL
Percebe-se o grau de favoritismo à Palma de Ouro quando um dos cineastas em competição, Karim Ainouz, me pergunta se The Substance, de Coralie Fargeat, é assim tão bom. De facto, o hype está com este filme americano de uma cineasta francesa especializado no “novo terror”, no tal “elevated terror”. Em resumo, sintetizo a minha resposta ao realizador de Motel Destino: não, não é assim tão bom. Tem aqueles problemas de filme de conceito que se esgota ao fim de uma volta do guião e chega a ser tão explícito no seu deslumbramento da questão do corpo feminino objetivado que se pode até chamá-lo de “porno body horror”. A verdade é que uma certa imprensa está levá-lo ao colo e há quem pense que Greta Gerwig e algumas companheiras do júri possam querer recompensar o seu discurso feminista.
Os verdadeiros favoritos
A boa notícia é que no fim do festival já chegaram mais outros dois títulos que se tornaram ainda mais favoritos: The Seed of Sacred Fig, do iraniano Mohammad Rasoulov e All We Imagine As Light, da indiana Payal Kapadia. Um por ter um peso simbólico da denúncia da ditadura violência do Irão, mas também por conter uma ideia de cinema de suspense claustrofóbica, o outro por ser uma brisa de olhar fresco em torno da sensualidade feminina indiana. Dois dos poucos filmes que causaram consenso.
Depois, claro, há ainda um certo empurrão da imprensa internacional ao musical (falhado, do meu ponto de vista) Emilia Perez, de Jacques Audiard. Tem caução do tema: a transexualidade no seio dos cartéis mexicano e o folclore das danças e das canções pode impressionar o júri. Oxalá que não, oxalá antes que outro dos filmes bem cotados nas listas do críticos, Bird, de Andrea Arnold, faça valer o seu imaginário de fábula com realismo mágico e voe no palmarés.
Os atores que marcaram Cannes
Um palmarés que nos atores podia premiar a comovente Chiara Mastroianni na sua mutação mastroianniana em Marcello Mio, de Honoré ou a própria Demi Moore numa mutação de “horror movie” no tal sobrevalorizado The Substance. Torço também muito por Sebastian Stan em The Apprentice, onde interpreta um jovem Trump absolutamente odioso ou por Jesse Plemons x 3 em Histórias de Bondade , de Yorgos Lanthimos, um dos grandes filmes desta edição.
Se a premiação fosse à la carte, Miguel Gomes e o seu deambulante Grand Tour teriam sempre lugar, talvez prémio do júri, mas também era impossível deixar de fugir a realização de Sean Baker em Anora, o meu filme coqueluche, ou a força de Karim Ainouz nesse cometa de desejo que é Motel Destino ou um Grand Prix para Cronenberg - The Shrouds é o filme que nos mais atropelou a mente nestes dias cannoises. Em contraste, a gargalhada de Crista Alfaiate em Grand Tour a a língua de Emma Stone dentro da boca de Willem Dafoe em Histórias de Bondade tiveram um efeito de apaziguamento. Ou de fuga...
RPT