Nome fulcral do moderno cinema europeu, o alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) está longe de ser um autor mal conhecido no contexto português. Lembremos o singular fenómeno de culto que, há quase meio século, envolveu o lançamento de O Casamento de Maria Braun, aliás iniciado com a sua consagração com o Grande Prémio da edição de 1979 do Festival Internacional da Figueira da Foz. Seja como for, nada disso invalida a importância, de uma só vez cinéfila e simbólica, de uma edição de filmes de Fassbinder em formato caseiro. Que é como quem diz: uma caixa de oito títulos em Blu-ray, com chancela da Leopardo Filmes. No atual contexto de diversificação dos circuitos de difusão — das salas tradicionais até às plataformas de “streaming”, passando pelas mais variadas alternativas virtuais — claro que não fará sentido abordar os filmes a partir das características específicas desses mesmos circuitos. Digamos, para simplificar, que uma obra-prima como Lawrence da Arábia foi fabricada em 1962 para ser vista num ecrã gigante, mas não se torna um “mau” filme (longe disso!) no retângulo minimalista do nosso televisor caseiro... Seja como for, perante esta edição de Fassbinder, não podemos deixar de sublinhar a sua raridade. Desde logo porque o mercado do DVD se esvaziou de forma inglória. Depois porque o sector de Blu-ray foi objeto de uma delapidação ainda mais cruel, aliás em contraste com outros países que souberam assumir a condição de nicho desse sector, investindo em edições “especializadas” que, de facto, mantêm uma estimulante relação (comercial) com as memórias da história do cinema. .Daí também um sublinhado muito especial para a excelência técnica desta edição. Como se prova, o Blu-ray possui um potencial de (re)valorização das versões originais que está longe de ser banal. E tanto mais que, no domínio particular das imagens, Fassbinder trabalhou com alguns mestres da direção fotográfica, incluindo Jürgen Jürges, Michael Ballhaus e Xaver Schwarzenberger. Para nos ficarmos por um exemplo eloquente, o reencontro com esse filme de uma beleza radical que é Effi Briest envolve uma vibração visual e afetiva que não pode ser dissociada da pureza das imagens a preto e branco assinadas por Dietrich Lohmann, outro raro talento da luz e das cores que fotografou, por exemplo, Hitler: Um Filme da Alemanha, de Hans-Jürgen Syberberg (curiosamente, também uma revelação de 1979 na Figueira da Foz). Do teatro à ópera .A herança de Fassbinder existe, assim, como uma imensa paisagem de narrativas em que podemos reencontrar o cinema como uma arte de síntese — das suas raízes teatrais até à coexistência com os arroubos da ópera —, sempre marcadas pelas intensidades dos sonhos e pesadelos da história do século XX alemão. Nesta perspectiva, vale a pena formular um voto de otimismo necessariamente moderado: será que a presente edição poderá ser um sinal de “renascimento” de um mercado (DVD + Blu-ray) que não pode ser destruído pela frase tecnocrática segundo a qual “agora, as pessoas só veem filmes no streaming”? Escusado será dizer que tal possibilidade está muito longe de se esgotar na obra de Fassbinder — é imensa a lista de títulos e autores susceptíveis de mobilizar os espectadores mais antigos e surpreender os novos cinéfilos. Atrevo-me a pensar no exemplo de Berlin Alexanderplatz (1980), a série televisiva (14 episódios, 15 horas de duração) que Fassbinder realizou a partir do romance de Alfred Döblin... Que bom seria revê-la em Blu-ray! .BLU-RAY x 8 São oito momentos da filmografia de Rainer Werner Fassbinder em imaculadas transcrições em Blu-ray — da sua fase assumidamente experimental até aos dramas da Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial. CUIDADO COM ESSA PUTA SAGRADA (1971) .A primeira fase da filmografia de Fassbinder distingue-se por componentes a que faz sentido chamar experimentais, ainda que o gosto íntimo da experimentação persista em toda a sua trajetória. Neste caso, a evocação da “puta sagrada” (a saber: uma câmara de filmar) expõe o misto de crueldade e artifício do cinema, a ponto de as atribulações da equipa de filmagens em torno da qual tudo acontece envolverem um jogo perverso de citações autobiográficas. Por vezes quase burlesco, este é, afinal, um hino ao cinema e à ambiguidade existencial que o contamina. O MERCADOR DAS QUATRO ESTAÇÕES (1971) .A obra de Fassbinder nunca deixou de ser uma verdadeira deambulação humanista. Neste caso, no centro dos acontecimentos, em plena década de 1950, está um vendedor ambulante de fruta que funciona como um espelho trágico das relações humanas, sobrevivendo no interior de uma rede de hipocrisias e mentiras que, no limite, esvazia o espaço social — Hans Hirschmüller é notável no papel central, sem esquecer a presença de Hanna Schygulla, já na altura uma atriz “oficial” do universo de Fassbinder. AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT (1972) .Se dúvidas houvesse sobre a teatralidade dos corpos e das palavras no universo de Fassbinder, eis o filme exato para penetrarmos no labirinto das suas formas, narrativas e emoções. Tendo como ponto de partida a peça homónima escrita pelo próprio Fassbinder, aqui encontramos as “lágrimas amargas” de uma designer de moda interpretada pela admirável Margit Carstensen, outra presença regular na obra do realizador. Passada, no essencial, na grande sala da casa de Petra von Kant, a ação tem qualquer coisa de desnudamento existencial assombrado pela possibilidade (ou impossibilidade) do amor, ou melhor, da entrega amorosa. O MEDO COME A ALMA (1973) .Amor louco — eis a expressão que vem à memória para descrever a aliança primordial, alheia às diferenças de cultura, classe e cor da pele, vivida pelas personagens interpretadas por Brigitte Mira e El Hedi ben Salem. Ainda assim, importa acrescentar que, tal como filmada por Fassbinder, essa loucura não é estranha a uma racionalidade radical, radicalmente ambígua, habitada por uma ternura sem fim. A direção fotográfica de Jürgen Jürges (colaborador frequente de Fassbinder) consegue o milagre de anular a oposição tradicional entre real e surreal. AMOR E PRECONCEITO (1974) .De novo com fotografia de Jürgen Jürges, desta vez a preto e branco, a adaptação do romance de Theodor Fontane, Effi Briest (publicado em 1895), ocupa um lugar central na herança de Fassbinder — tendo sido também o seu título mais popular nas salas alemãs. Por vezes classificado como uma Madame Bovary em tom germânico, o romance de Fontane surge transfigurado numa múltipla cerimónia social cujos rituais serão decompostos pela verdade anímica da personagem central. A cristalina interpretação de Effi por Hanna Schygulla é também uma dádiva de Fassbinder à sua atriz. MAMÃ KÜSTERS VAI PARA O CÉU (1975) .Não fará muito sentido rotular Fassbinder de “cronista social”, de tal modo o seu labor formal e narrativo excede as convenções habitualmente associadas a tal designação. O que, bem entendido, não quer dizer que a sua visão seja alheia a uma metódica observação crítica das diferenças e tensões sociais. Exemplo esclarecedor será este retrato trágico de Emma Küsters (Brigitte Mira), envolvida num labirinto familiar e político em que, de uma maneira ou de outra, cada ser humano descobre as marcas de uma crueldade que, em última instância, espelha a Alemanha de meados da década de 1970 — tão prodigioso quanto mal conhecido. ROLETA CHINESA (1976) .Eis um verdadeiro jogo de aritmética conjugal. Quando se filma um adultério, desembocamos quase sempre das agruras do drama ou nos delírios da comédia. Quando se filmam dois adultérios (entenda-se: envolvendo as figuras do mesmo casal), instala-se um assombramento que nos faz ver os desejos humanos como inevitavelmente alheios à ordem do mundo. Assim acontece nesta “roleta” cinematográfica capaz de misturar o negrume do “thriller” com a luminosidade dos contos de fadas. Com duas atrizes “roubadas” ao universo de Godard: Anna Karina e Macha Méril. O CASAMENTO DE MARIA BRAUN (1978) .É o primeiro título de uma trilogia sobre a Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial (tendo sempre uma personagem feminina como elemento nuclear) e também, por certo, um dos mais internacionais de Fassbinder. Interpretada pela sublime Hanna Schygulla, Maria Braun casa-se nos dias finais da guerra, acabando por enfrentar uma avalanche de acontecimentos que espelha os cruéis contrastes do “milagre económico” que se seguiu. É um dos títulos de Fassbinder com fotografia de Michael Ballhaus, pouco antes de começar a trabalhar nos EUA, nomeadamente em vários filmes de Martin Scorsese. .Rainer Werner Fassbinder: O cineasta do medo e das nossas almas