Como evoluiu a Internet nas últimas duas décadas? Entre as respostas possíveis, das mais radiosas às mais inquietantes, nenhuma pode ignorar a história do Facebook. Tendo chegado recentemente aos 3 mil milhões de utilizadores, talvez possamos resumir o seu peso virtual (mas muito concreto) através de um contraste esquemático. Assim, logo após a sua fundação, em 2004, a rede social de Mark Zuckerberg foi celebrada por vozes de muitos quadrantes (incluindo o espaço político) como o paraíso de todas as comunicações — de repente, era possível praticar uma partilha global de mensagens que garantia a pureza virginal e ecuménica de uma humanidade milagrosamente pacificada. Depois, o Facebook passou a ser associado a dramas muito reais, como tal questionado e investigado, dramas envolvendo conteúdos que vão desde formas de difamação de pessoas LGBT até à repressão da minoria muçulmana em Myanmar, passando pelo processo (social, justamente) que transformou Donald Trump em presidente dos EUA. Lembremos um dos ecos artísticos de tudo isso: em 2010, David Fincher realizou o filme A Rede Social, uma das obras-primas que Hollywood gerou neste século XXI, abordando o nascimento do Facebook como uma pueril religião da comunicação “sem contradições”, afinal enraizada numa clássica estratégia de negócio e multiplicação de lucros. Construído a partir de um argumento assinado por Aaron Sorkin (que lhe valeu um Óscar), o filme tinha como base o livro The Accidental Billionaires (ed. Doubleday, 2009), de Ben Mezrich (a edição portuguesa, Milionários Acidentais – A Fundação do Facebook, surgiu em 2010, com chancela da editora Lua de Papel). Em 2021, Sheera Frenkel e Cecilia Kang, jornalistas do New York Times, publicaram An Ugly Truth (ed. The Bridge Street Press), notável investigação sobre a “batalha pelo domínio” comunicacional do Facebook (a tradução portuguesa, com o título Manipulados, foi lançada em 2022 pela editora Objectiva). Agora, podemos descobrir uma genuína crónica intimista, contada por Sarah Wynn-Williams que viveu sete anos da sua vida profissional no interior do Facebook — chama-se Careless People (ed. Macmillan) e, ao longo dos meses de maio/junho, passou seis semanas na lista de “best-sellers” do New York Times. Nascida na Nova Zelândia, a autora trabalhou na embaixada do seu país em Washington, tendo entrado para o Facebook em 2011, em pouco tempo ascendendo ao cargo de coordenadora da estratégia global da empresa (“global public policy”). A sua experiência diplomática ajudou-a a abrir vias de diálogo com os poderosos deste mundo. O certo é que aquilo que começou por ser a realização de um sonho, rapidamente se transformou em pesadelo, primeiro por causa da desorganização quase burlesca que encontrou, depois descobrindo-se como peça incauta de um xadrez cujo “ponto de fuga” era sempre a figura intocável de Mark Zuckerberg. Muito cedo deparou com uma centralização que, mais do que empresarial, decorria de uma “psicologia” bizarra: “Foi-me gentilmente sugerido que, sendo Mark um ingénuo político, não é do interesse da companhia colocá-lo em encontros com chefes de estado”. "Pessoas descuidadas” O livro é tanto mais interessante, até mesmo emocionalmente envolvente, quanto Sarah Wynn-Williams não está a defender uma “tese”, mas sim a percorrer memórias de uma experiência pessoal iniciada em tom utópico para desembocar numa cruel frustração. Daí os elementos pessoais da narrativa, desde logo a experiência da gravidez vivida durante os primeiros tempos no Facebook, a par de diversos dados perturbantes, incluindo a descoberta da partilha de informações sobre novos recursos de inteligência artificial com o Partido Comunista da China, “apenas” para garantir uma maior abertura do mercado chinês ao Facebook. Seja como for, a história de Careless People também não acaba aqui, já que a Meta (proprietária do Facebook), além de denunciar aquilo que considera as “mentiras” da autora, interpôs uma ação legal que a impediu de cumprir a habitual digressão promocional do livro. Resta recordar a origem do título — à letra “pessoas descuidadas”, embora arrastando também as sugestões de superioridade, indiferença e manipulação. A expressão provém de O Grande Gatsby (1925), de F. Scott Fitzgerald, e surge no parágrafo que serve de epígrafe ao livro: “Tom e Daisy eram pessoas descuidadas — esmagavam as coisas e as criaturas, e depois retiravam-se para o seu dinheiro ou a sua imensa indiferença, ou o que quer que fosse que os mantinha unidos, deixando os outros a limpar a confusão que tinham gerado.”