Civilização, colonização, extermínio. Três palavras que resumem o percurso da humanidade. Já sabemos o suficiente sobre elas, é certo, mas, como escreveu Sven Lindqvist (1932-2019) em Exterminem Todas as Bestas, "não é de informação que carecemos. O que nos falta é a coragem para compreender o que sabemos e tirarmos conclusões." Esta é uma das primeiras frases do livro do autor sueco, e é também o derradeiro pensamento com que nos deixa a minissérie homónima agora realizada pelo haitiano Raoul Peck. Ambos, Lindqvist e Peck, estão conscientes de que, quer o livro (lançado em 1992) quer o objeto documental, não são contributos para a investigação histórica. O que lhes interessa é outra coisa: enfrentar os conceitos teóricos na medida do seu reflexo contemporâneo. É esse princípio de frontalidade que está na base de uma viagem impactante pela história do colonialismo europeu enquanto génese do racismo e das ideias entranhadas que conduziram ao Holocausto. Sim, conhecemos o sentido das palavras "civilização", "colonização" e "extermínio", mas não escapamos ao receio de encarar a relação entre elas. Em quatro episódios, Peck faz-nos um desenho desse medo..O título da minissérie, amigavelmente roubado ao livro de Lindqvist, é, por sua vez, retirado da prosa de Joseph Conrad em O Coração das Trevas. Ou melhor, é o protagonista do romance, o coronel Kurtz, que escreve: "Exterminem todas as bestas." Uma frase que nos interpela pela sua brutalidade, tal como nos interpelava a força de I Am Not Your Negro - Não Sou o Teu Negro (2016), o título do documentário mais conhecido de Raoul Peck. Mas se neste último o realizador punha Samuel L. Jackson a ler em off um manuscrito inacabado do escritor James Baldwin, em Exterminate All the Brutes é o próprio Peck quem empresta a voz cava a uma longa reflexão desconfortável, mas necessária - por vezes filosófica -, sobre os passos da humanidade que conduziram ao seu mais abominável momento..YouTubeyoutubeg37YqLD0BSg.Desta vez, o cineasta que tem deixado os seus filmes falarem por si assume-se, simultaneamente, como narrador e como parte da narrativa ("a neutralidade não é uma opção"), oferecendo um traço íntimo à mistura volumosa de materiais de que é feito o documentário. Os vídeos caseiros da família Peck surgem, assim, combinados com arquivos históricos, fotografias, pinturas, ilustrações, animações, mapas, números, palavras-chave, interlúdios de música pop e excertos de vários filmes. Entre estes, encontramos a adaptação portuguesa de um conto de Conrad, Posto Avançado do Progresso (2016), de Hugo Vieira da Silva, a que o realizador regressa mais do que um par de vezes para observar, como quem estuda dois insetos, a postura dos colonizadores inexperientes interpretados por Nuno Lopes e Ivo Alexandre..A tudo isto juntam-se ainda sequências filmadas de propósito para a minissérie, quase todas com Josh Hartnett a encarnar a visão do homem branco todo-poderoso, que se confunde com o colonizador sanguinário. Uma abordagem metaficcional que torna o projeto híbrido, quebrando, aqui e ali, o registo documental. Seja como for, é o fio condutor da voz de Peck que põe ordem na abundância de fontes visuais. Uma voz que intimida pelo timbre cavernoso, mas que também imprime a essência humanista da empreitada..Em Exterminate All the Brutes aborda-se a história do colonialismo europeu - começando no final do século XV, quando Cristóvão Colombo levantou âncora -, o modo como o cristianismo e a Inquisição estabeleceram o conceito de raça com base no sangue (estão aqui as sementes do que levou à legalização da escravatura e, mais tarde, ao extermínio dos judeus), a validação científica da ideia de que há raças votadas à extinção (a seleção natural segundo Darwin), a guerra e o poder das armas, entre outros assuntos. Não necessariamente por esta ordem..Raoul Peck confronta também a tão proclamada ideia de grandeza americana com a fundação dos Estados Unidos ligada ao poder colonial (a questão do domínio da terra e a eliminação dos Índios), desfazendo o mito da terra virgem. E mostra como a retórica versus realidade continua a permitir que paire a sombra do fascismo. De resto, isto anda tudo ligado, ou não existisse uma verdade que custa muito ter presente. A saber: Hitler inspirou-se no quase extermínio dos nativos americanos para aplicar a sua própria "solução final", o genocídio da população judaica..No seu fluxo ensaístico, a minissérie não se apresenta como uma cronologia de factos arrumadinhos. Pelo contrário, estes surgem numa lógica de diálogo entre o registo levemente biográfico e a história coletiva, servindo uma constante analogia geográfica e dando ocasião a observações paralelas. Para além da sua infância no Haiti e da década e meia passada em Berlim, onde estudou cinema, Peck fala-nos da sua admiração pessoal pelos autores cujas obras estão na origem deste Exterminate All the Brutes: não apenas Sven Lindqvist, mas igualmente o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot e a historiadora americana Roxanne Dunber-Ortiz..Se quisermos, a fraternidade humana, sobretudo a que nasce do pensamento e da consciência histórica, é o ponto de Peck. E estes quatro episódios documentais, dentro da expressão didática a que não podem fugir, são uma brava e envolvente lição de História, fruto da montagem robusta do realizador culto e da introspeção do homem que se debate com aquilo que os outros não querem lembrar. "Temos de falar sobre isto", diz ele, Raoul Peck, um cavalheiro sempre ao serviço da memória coletiva..dnot@dn.pt