No cinema e, em particular, nas plataformas de streaming, temos assistido a uma renovada obsessão por personagens cujo individualismo acaba por ser uma via aberta para as grandes convulsões coletivas. No dia 14, a Netflix vai estrear mais uma série que se anuncia como um caso sintomático de tal tendência: Halston faz o retrato de Roy Halston Frowick (1932-1990), figura paradoxal do mundo da moda - uma lenda de muitos mistérios, reconhecido e celebrado pelo seu papel transformador no guarda-roupa feminino ao longo dos anos 1960/70..O ator que interpreta Halston constitui, por certo, uma das maiores surpresas do projeto: Ewan McGregor. De origem escocesa, nascido na cidade de Perth, em 1971, "menino bonito" do cinema britânico, mitificado pela sua participação em Trainspotting (1996), McGregor parece ter em Halston um desafio pouco comum: o de revitalizar a memória de alguém que tem sido muitas vezes reduzido a símbolo mais ou menos descartável de acontecimentos que, afinal, o transcendem..Halston, convém lembrar, trabalhou para personalidades como Jacqueline Kennedy. Bastou, aliás, ter desenhado o chapéu que ela usou a 20 de janeiro de 1961, nas cerimónias de tomada de posse do marido (John F. Kennedy, 35.º presidente dos EUA), para que o seu nome adquirisse a patine do prestígio. Enfim, resumindo uma vida tão exuberante quanto atribulada, Halston foi figura emblemática do círculo íntimo de Andy Warhol, tendo na sua agenda de clientes nomes como Greta Garbo, Lauren Bacall e Elizabeth Taylor. O seu estilo austero e minimalista é muitas vezes associado à transformação da existência social das mulheres, superando a condição de "fadas do lar" para passarem a ter uma presença crescente no quotidiano profissional. Vítima de sida, Halston faleceu em 1990, contava 57 anos..Não se pode dizer que Halston seja a primeira personagem "atípica" assumida por Ewan McGregor. Sem esquecer, claro, que para as gerações mais novas de espectadores, ele será, sobretudo, porventura exclusivamente, a encarnação de Obi-Wan Kenobi, de Star Wars. Foi Alec Guinness que começou por dar vida ao mestre Jedi nos primeiros filmes da saga, correspondentes aos episódios IV, V e VI, filmados entre 1977 e 1983. McGregor surgiria como a versão mais jovem da personagem nos episódios I, II e III: A Ameaça Fantasma (1999), O Ataque dos Clones (2002) e A Vingança dos Sith (2005). Agora, está em marcha o projeto de uma série intitulada Obi-Wan Kenobi: as especulações são muitas, as informações ainda muito poucas - McGregor terá o papel central e Hayden Christensen regressa como Darth Vader. As filmagens começaram em abril, com o nome de McGregor a surgir também na qualidade de produtor executivo..Acontece que as raízes do trabalho de McGregor como ator nada têm que ver com o mundo de Star Wars, nem sequer com a noção corrente de espetáculo de "efeitos especiais". Pode mesmo dizer-se que ele começou no domínio mais experimental, e também mais fascinante, da televisão britânica. Estreou-se em Lipstick on Your Collar (1993), uma das séries do grande Dennis Potter, criada na sequência de Pennies from Heaven (1978) e The Singing Detective (1986), todas concebidas a partir de referências históricas muito realistas - no caso de Lipstick on Your Collar, a crise do Canal de Suez, em 1956 -, mas com os atores num registo artificioso capaz de integrar canções da época interpretadas em "playback"..Em poucos anos, ainda antes do convite para o elenco de Star Wars, McGregor passou por alguns dos títulos mais significativos da década de 90, a começar pelos que Danny Boyle dirigiu: Pequenos Crimes entre Amigos (1994) e Trainspotting (1996). De alguma maneira, o sentido paródico do primeiro, ironizando as convenções do género policial, passou para o segundo, mas agora num ambiente e num estilo bem diferentes. Tendo como base o romance homónimo de Irvine Welsh, um verdadeiro fenómeno de culto, Trainspotting fazia o retrato de Renton (a personagem de McGregor), em Edimburgo, projetando um plano para pôr fim ao consumo de drogas mas, em boa verdade, arrastando-se com os amigos por ambiências surreais, numa verdadeira corda bamba entre a paródia mais delirante e a tragédia sem retorno..Se Trainspotting era uma espécie de calculada perversão da tradição realista britânica, forçando o realismo a cruzar sonho e pesadelo, logo a seguir McGregor surgiu num filme de coordenadas bem diferentes, porque assumidamente teatralizadas: O Livro de Cabeceira, apropriando-se de referências da cultura japonesa, é uma das experiências mais sofisticadas na trajetória de Peter Greenaway, celebrando o cinema como uma arte de exposição dos mistérios do corpo humano, das suas relações com o poder das palavras e a sensualidade da escrita..Insólita, mas essencial, na filmografia de McGregor é a relação com a música. Assim, o seu nome ficou ligado a dois projetos que, embora de modos bem diferentes, apostam na reinvenção das relações entre cinema e matérias musicais. O mais conhecido será, sem dúvida, Moulin Rouge! (2001), de Baz Luhrmann, uma fantasia visual em que o par que McGregor forma com Nicole Kidman vive uma experiência puramente artificiosa, a meio caminho entre o teatro da Broadway e a tradição do filme musical de Hollywood..Bem diferente é Velvet Goldmine, de Todd Haynes, uma das sensações do Festival de Cannes de 1998. O filme começou por ter David Bowie como inspiração central, não apenas no plano musical, mas também enquanto ícone do glam rock. Sabendo do projeto e considerando que integrava muitas referências à sua vida pessoal, Bowie ameaçou processar os autores, o que levou a consideráveis alterações do argumento. Seja como for, a personagem de Brian Slade, interpretada por Jonathan Rhys Meyers, não deixa de, pelo menos, lembrar o Bowie da época de Ziggy Stardust. A seu lado, surge McGregor a interpretar Curt Wild, uma "derivação" de Lou Reed, também longe de qualquer efeito biográfico, mas refletindo igualmente o espírito de toda uma época de assumidos artifícios, quase sempre cúmplices da teatralidade da tragédia..A partir da integração na paisagem de Star Wars, Ewan McGregor passou a ser um ator mais solicitado do que nunca, o que, talvez inevitavelmente, lhe trouxe um ganho paradoxal: por um lado, o acesso a uma maior diversidade de projetos; por outro lado, alguns "percalços" mais ou menos desastrosos....Uma coisa é certa: McGregor nunca se fixou num determinado modelo de produção. Bem pelo contrário, o seu trabalho tem evoluído em permanente ziguezague entre grandes produções e títulos de orçamentos obviamente mais reduzidos, com características mais ou menos "independentes". Entre estes, vale a pena destacar Young Adam (2003), de David MacKenzie, estranha e perturbante desmontagem de um crime em que contracena com Tilda Swinton, sendo a banda sonora assinada por David Byrne..Vimo-lo, depois, no magnífico O Grande Peixe (2003), porventura a mais subtil parábola de Tim Burton sobre a condição dos filhos face à herança dos pais, com Albert Finney no papel central. A Ilha (2005), de Michael Bay, com o protagonismo repartido com Scarlett Johansson, ficaria como um dos maiores fiascos da sua carreira: uma aventura num futuro apocalíptico, copiando sem imaginação temas e situações de outros filmes, para mais "afogando" as situações (e também os intérpretes) no gratuito dos efeitos especiais..Dir-se-ia que McGregor, tal como muitos atores europeus da idade de ouro de Hollywood, possui as qualidades necessárias e suficientes para mudar de personagem e registo dramático sem que tal afete a sua identidade artística. Daí também a sua capacidade para integrar elencos que envolvem algum efeito "coral", sem que ninguém surja como figura dominante. Lembremos alguns casos exemplares: Cercados (2001), de Ridley Scott, sobre a guerra civil na Somália; O Sonho de Cassandra (2007), ao lado de Colin Farrell, um conto moral de Woody Allen contaminado pelas tensões típicas de um thriller; Eu Amo-te Philip Morris (2009), da dupla Glenn Ficarra/John Requa, contracenando com Jim Carrey na representação quase burlesca, estranhamente realista, das atribulações de um amor homossexual; o prodigioso O Escritor Fantasma (2010), drama sobre os bastidores da política com assinatura de Roman Polanski; ou ainda a maravilhosa reinvenção dos livros de Winnie the Pooh em Christopher Robin (2018), de Marc Forster, filme nunca estreado nas salas portuguesas....Muito para lá das galáxias de Star Wars e afins, o talento de Ewan McGregor envolve um empenho muito especial na prospeção dos impulsos e paixões que determinam o comportamento humano. Isso mesmo está expresso nesse filme brilhante, tão mal conhecido, que é Uma História Americana (2016), adaptando o romance American Pastoral, de Philip Roth, sobre uma família assombrada pelas muitas crises (morais, geracionais, ideológicas) dos anos 1960 - com a particularidade, não desprezável, de ser, até agora, a única longa-metragem que McGregor realizou..dnot@dn.pt