O que é feito de Eugénia Melo e Castro? É a pergunta que mais se ouve quando se fala no nome da cantora portuguesa. É a própria que o confirma. Em conversa com o Diário de Notícias, desde o seu refúgio no Alentejo, conta que não tem parado e que continua a gravar todos os anos sem dar qualquer importância à necessidade cada vez mais proeminente de ser falada. Não está desaparecida nem esquecida, como muitos, pelo menos em Portugal, pensam, explica. Aliás, "não tenho tido sossego" e tem gravado à média de um disco por ano, para além dos inúmeros espetáculos que tem dado no Brasil. E tudo estava a "correr normalmente" e quase a entrar em estúdio para gravar mais um novo trabalho quando surgiu a pandemia. Um trabalho que estava praticamente pronto com "músicas escolhidas e quase tudo decidido", é um disco de intérprete com base em compositores paulistas, chama-se Paulista Ambulante. "É a minha homenagem a São Paulo, que me tem aturado estes anos todos". A estadia "forçada" de mais de um ano em Portugal não lhe é comum, gosta do movimento, mas agora está no Alentejo, onde cava batatas e planta flores, e gosta. Diz com o mesmo sorriso de miúda que se lhe conhece há anos. "Vim para Portugal no início de fevereiro de 2020 e aqui estou desde então". O covid impede-a de continuar o seu movimento constante entre os dois países, que tem sido a sua vida nos últimos anos - três meses cá, três meses lá. Mas não a impede de, entretanto, ter lançado em finais de 2020 o álbum Sweet Psychadelics um trabalho diferente do habitual, que demorou vários anos a preparar. Foi gravado com a banda com o mesmo nome do álbum à qual Eugénia Melo Castro dá a voz. "É cantado em inglês, com um som contemporâneo de valsas psicadélicas, bossas setentistas e vigorosas canções inspiradas na sétima arte", diz..Mas já há mais coisas a caminho. "Já tenho mais uma ou duas ideias que quero fazer e que vieram ter comigo neste último ano em que houve muito tempo para escrever e compor". Tempos que, provavelmente ficaram refletidos em futuros trabalhos. "O que vivemos reflete-se em tudo", diz..A atual situação política do Brasil vem à conversa. A face da cantora muda. Há um esgar de desespero. E conta: que para além do óbvio do trópico, o que define o Brasil é a arte, os cantores, os arquitetos, os pensadores, os jornalistas, as pessoas extraordinárias e cultas no país, "e que em nada coincide com esta situação que se vive no Brasil. Falo todos os dias com os meus amigos e eles estão desesperados". Mas tem esperança na capacidade do país se reerguer e andar para a frente. "Isso vai acontecer, não há mal que sempre dure"..E como explicar quem é Eugénia Melo e Castro e o seu papel na música portuguesa às novas gerações? Eugénia sorri e responde: "Acho difícil, mas talvez dizendo que sou uma cantora que começou a carreira em simultâneo em Portugal e no Brasil e que trabalhou com compositores dos dois países. Aquilo que hoje é comum na colaboração entre músicos, na altura não era assim". E há mais para dizer? "Sim, explicar que fui das primeiras a ir para lá sozinha nos anos 1980 e que enfrentei alguns preconceitos e críticas ao dizerem que gostava mais de brasileiros do que dos portugueses, o que não é verdade". Faz questão em recordar que a certa altura muitos "brincavam" com ela quando dizia que ia convidar compositores e letristas como Wagner Tiso ou que ia cantar com Ney Matogrosso. Eugénia conseguiu isso e muito mais na sua diáspora em terras brasileiras, desde trabalhar com Chico Buarque, colaborar com Nelson Motta, entre muitos, muitos outros. Nesse vai e volta entre os dois países, Eugénia Melo e Castro acredita que Portugal esqueceu-se dela. Diz sem abnegação: "não tenho a menor dúvida". Mas explica que essa realidade nunca a assombrou. "Como nunca parei e estive sempre a gravar, não tive essa sensação". Não lancei em Portugal, o Gosto de Sol, gravado em 2011, porque já estava em streaming mas depois lancei cá o Conversas com Versos, o álbum e o livro. O trabalho seguinte, Mar Virtual também não foi lançado em Portugal, apenas no streaming. Foram dois, três anos sem dizer nada e isso teve a sua repercussão". E acusa-se de ter demasiado trabalho ."Tenho 400 músicas gravadas e por vezes deve haver quem pense: lá vem ela outra vez com mais um disco... e agora ainda venho complicar mais a minha vida, porque apareço com uma banda, Sweet Psychadelics, e a cantar em inglês. As pessoas que não me conhecem têm de ir às plataformas de streaming para perceber o que fiz antes"..O streaming passa a assunto principal da conversa. Bom ou mau? Depende, comenta. A excitação dos lançamentos de outrora, com entrevistas nos jornais, programas de TV, etc, foi substituído por algoritmos e números que poucos percebem "ter 300 milhões visualizações não quer dizer que se venderia essa quantidade em discos físicos. O mundo mudou e não há volta atrás, as pessoas têm de se mostrar e muito mais permanentemente. Têm de ser excêntricas, têm de apresentar algo diferente, para a malta nova isso é fantástico, mas para quem já não tem muita paciência para tanta competição e quer mais apuramento e refinamento naquilo que faz, são armas diferentes na mesma guerra". Mas a ideia de "o que anda Eugénia Melo e Castro a fazer" continua a persegui-la, mesmo quando não se justifica, acredita que é algo geracional.."As pessoas mais novas são mais curiosas, ouvem-me porque chegam à minha música por algum algoritmo ou por algo que as ligou a mim, as pessoas da minha geração são diferentes". E exemplifica: "fiz uma grande tournée em Portugal em 2007. Toquei no CCB, Casa da Música, Algarve, Coimbra, muitos, muitos espetáculos com uma banda enorme. Aliás no CCB havia uma faixa enorme com o meu nome, fui à TV, dei entrevistas nos jornais, inclusive um anúncio de TV. Mas logo a seguir a isso tive pessoas, sobretudo da minha idade, a perguntar-me o que andava a fazer e porque andava desaparecida...acho sinceramente que a grande maioria das pessoas da minha geração não quer saber, gosta é da conversa pela conversa, se gosto mais de Portugal ou do Brasil"..A cantora, que rejeita a ideia de ter construído uma carreira, prefere falar num percurso de quase 40 anos com estradas e estradinhas e sem ir em modas. "Mas isso tem um preço, e o esse preço é o tal Geninha o que andas a fazer?". Mas, tal como diz a letra de José Mário Branco "todo o mundo é composto de mudança" e Eugénia Melo e Castro aceita-o. "Não sou a mesma pessoa que era no início, mas não há dúvida que a minha linha de pensamento e a minha atração pela música e o meu sentimento, não mudou. Mas estou muito mais segura e tranquila e muito e menos ríspida, hoje adoro trabalhar com pessoa que me colocam desafios e que me fazem sair totalmente da minha zona de conforto"..Há curiosidade inerente ao processo criativo de Eugénia Melo e Castro. Metodologia, rigor, disciplina? Não, antes pelo contrário. "Não tenho rotinas. Às vezes estou no carro e surge uma frase na minha cabeça e escrevo-a logo", e em todo o lado. No caderno, no computador, no telemóvel ou mesmo atrás de um recibo. Partilha uma história das inúmeras que rapidamente lhe surgem na memória. Aquando da preparação do disco Desconstrução (2006), com autoria total, música e letra de Chico Buarque, relembra um desses encontros, em casa dele no carioca bairro do Leblon. Num certo dia, o autor brasileiro calçava umas havaianas com imensas letras à toa. A inspiração, conta, foi imediata para escrever uma letra. "Assim que deixei a sua casas, saí do elevador e pedi logo uma caneta e papel ao porteiro do prédio e foi logo ali que escrevi uma letra que começou a surgir na minha cabeça. O resultado desse acaso foi uma letra feita para o Chico Buarque chamado Chão de Letras. Uma brincadeira à música Chão de Estrelas de Sílvio Caldas, um clássico da música popular brasileira cantada por muitos músicos brasileiros. Um exemplo da inspiração que chega do acaso, indisciplinada. "São as coisas inusitadas e divertidas do dia-a-dia, a minha cabeça parece uma máquina de observação". No final da conversa, uma pergunta sobre o que anda a ouvir, enquanto trata da sua casa no Alentejo. "Ando a ouvir o que ouvia nos anos 1970, porque são as coisas que me despertaram para o sonho e para a fantasia". Paul Simon, The Doors, The Beatles, e Melody Gardot estão no role da lista de preferências a que acrescenta muita música clássica. E não acaba a conversa sem dizer que não aceita a ditadura do algoritmo "sou eu que escolho aquilo que quero ouvir". Fica-se a saber o que ouve e anda afinal a fazer Eugénia Melo e Castro. A falsa serena que não vai em modas.